Imagina que um dia sua vida dá uma reviravolta e você tem que permanecer escondido em uma gruta durante anos sem ser visto absolutamente por ninguém. Dois homens fizeram precisamente isso durante 30 e 27 anos. A primeira história, de Hiroo Onoda, já recontamos no post "Após o término da Segunda Guerra Mundial, um soldado japonês se recusou a se render por 3 décadas". Agora chegou a vez de recontar a jornada de Shoichi Yokoi, o "Japonês Fiel". |
Tropas da Marinha em Guam.
Este artigo foi publicado originalmente em dezembro de 2010, mas de lá para cá reuni tanta informação sobre o episódio que decidi recontar toda a história desde o zero. Espero que gostem
Em 24 de janeiro de 1972, dois locais da aldeia de Talofofo, na região sul da ilha de Guam, estavam caçando ao longo do rio quando escutaram um som estranho em uma área de fleresta. A princípio pensaram que era um animal, mas o movimento dos ramos indicava outra coisa. Talvez fosse alguma criança nos arbustos, pensaram os caçadores.
No entanto, o que iam ver era bem mais surpreendente, e para entender tudo isso vamos retroceder o relógio do tempo por quase três décadas.
Os retardatários
Tropas da Marinha em Guam.
Guam, a ilha no Pacífico Ocidental, passou a ser posse dos Estados Unidos em 1898 após a guerra hispano-americana. Em 1941, os japoneses atacaram-na e ficaram com ela, e em 1944, depois de três anos de ocupação japonesa, as forças americanas a retomaram.
Em 2 de setembro de 1945, menos de um mês após o lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, os representantes do Império do Japão assinaram a rendição incondicional do país aos Aliados. O evento, propositalmente vexatório, que oficialmente marcou o final da Segunda Guerra Mundial, ocorreu a bordo do USS Missouri ancorado na Baía de Tóquio.
Em todo o leste da Ásia e Pacífico começou o desarmamento em massa das forças japonesas imperiais: coletaram armas, interrogaram e documentaram os oficiais e os soldados foram enviados de volta para casa.
No entanto, para alguns poucos soldados japoneses, a guerra duraria meses, anos e inclusive décadas. Para eles, os conhecidos como holdouts (retardatários), a guerra não podia terminar assim. Para estes veteranos de combate, a guerra perdurava em lembranças de camaradagem, perda, orgulho e vergonha.
Soldados americanos em Guam.
Durante a contenda, o Japão tinha enviado tropas a quase todas as ilhas habitáveis do Pacífico com o único intuito de defender o Imperador e seu território com suas próprias vidas. Alguns soldados estavam tão isolados da civilização que, ou bem não sabiam que a guerra tinha terminado, ou simplesmente se negavam a crer.
Em Guam, Indonésia e Filipinas, especialmente, dezenas de soldados continuariam realizando ataques de guerrilha contra as forças militares e policiais locais. As forças aliadas empregaram todo tipo de incursões nas selvas com folhetos que anunciavam o fim, mas os retardatários continuaram com sua luta.
Alguns inclusive se ofereceram como voluntários para lutar junto aos movimentos de independência vietnamitas e indonésios até no início dos anos 50. Estes homens mergulharam nas florestas remotas e montanhosas enquanto as forças aliadas retomavam dezenas de ilhas do Pacífico conquistadas pelo Japão.
Uma contagem oficial de 127 holdouts rendeu-se em vários lugares na Área do Pacífico entre 1947 e 1974. Este número não inclui os muitos que morreram em seus esconderijos, e só foram descobertos décadas mais tarde. E uma das histórias mais surpreendentes foi a de Shoichi Yokoi.
Três décadas esperando ordens
Shoichi Yokoi.
Yokoi foi um sargento no Exército Imperial Japonês estacionado em Guam durante a ocupação japonesa na Segunda Guerra Mundial. Nasceu em 31 de março de 1915 e criou-se na cidade de Nagoya, Saori, na Prefeitura de Aichi, no centro do Japão.
Shoichi trabalhava como aprendiz de alfaiate quando foi recrutado para o serviço militar em 1941. Depois serviu na 29° Divisão de Infantaria que foi enviada a Manchuko no nordeste da China. Mais tarde a divisão foi incorpotada ao 38º Regimento e o homem terminou em Guam, em fevereiro de 1943. Enquanto estava na ilha, o sargento de 28 anos era ul soldado exemplar no corpo de fornecimentos da marinha japonesa.
Em julho de 1944 as forças estadunidenses regressaram a Guam, quando aconteceu uma sangrenta batalha pela posse da ilha. O regimento de Yokoi ficou praticamente aniquilado. De fato, presumiam que o próprio Yokoi tinha morrido na batalha. Inclusive teve um anúncio oficial em 1955 do governo japonês oficializando sua morte.
Bombardeio de Guam em 14 de julho de 1944 antes da batalha.
Com a ruptura do comando japonês em Guam, os soldados como Yokoi tiveram que se valer por si mesmos sob um único dogma a ter em conta: escolher sempre a morte à desgraça de serem capturados vivos.
Nas seguintes semanas os soldados americanos e inclusive os civis perseguiram os retardatários japoneses na denominada Patrulha de Combate. Para setembro de 1944, quase 5.000 holdouts tinham sido assassinados apesar dos folhetos e propaganda dos Estados Unidos que exigiam sua rendição.
No final da guerra em agosto de 1945, achavam que ao redor de 130 retardatários continuavam a luta por sua conta, tratando de sobreviver apesar de suas terríveis circunstâncias. Durante as seguintes três décadas, 114 holdouts renderam-se, o resto morreu assassinado.
E Yokoi? Tinha morrido realmente?
Soldados japoneses capturados na selva.
Enquanto a maioria dos soldados japoneses foram capturados ou assassinados, Yokoi, em um grupo de dez pessoas, retirou-se às profundezas da selva. Estes dez homens não demoraram muito em se dar conta de que um grupo tão grande seria facilmente descoberto.
Sete deles partiram a outras áreas. O que ocorreu a eles ainda é uma incógnita. Os três homens restantes, incluído Yokoi, dividiram-se em diferentes esconderijos na região, ainda que durante um tempo seguissem se visitando entre si.
O grupo escutou que a guerra tinha terminado ao redor de 1952. No entanto, não estavam seguros de que a informação fosse verdadeira e temiam por suas vidas se fossem capturados ou se rendessem, motivo pelo qual decidiram permanecer escondidos. Yokoi acreditava firmemente que seus antigos colegas algum dia voltariam para buscá-lo.
Mapa que mostra o progresso da campanha de Guam.
Nos primeiros meses após a guerra, Yokoi e seus colegas aprenderam como colher e cozinhar alimentos no meio da selva. Começaram a fabricar seus próprios calçados, como sandálias tecidas com fibras vegetais, e inclusive começaram a consertar suas roupas com peles de sapo secas.
Em 1964, Yokoi soube que já estava só em sua aventura: encontrou seus dois colegas mortos, cada um em seu esconderijo, e os enterrou na selva. A agonia que mostravam as expressões de ambos parecia indicar claramente que morreram de fome.
A "gruta" de Yokoi".
Yokoi demorou mais de três meses para cavar sua própria "gruta", não longe das cataratas Talofofo, de alguns metros de profundidade. Apoiada por grandes escoras de bambu, a pequena habitação subterrânea tinha uma pequena entrada oculta e uma segunda abertura como fornecimento de ar.
No interior escondia-se de dia e guardava seus poucos pertences. Que se saiba, só deixava a gruta na escuridão da noite. A princípio custou a caçar, mas com o tempo acabou se tornando em especialista se alimentando de peixes, rãs, cobras ou inclusive ratos.
A "gruta" de Yokoi".
Também aprendeu a usar as frutas e verduras que encontrava. De fato, dois de seus tesouros mais preciosos foram uma armadilha de enguia que ele mesmo fez, e um tear com o qual fez roupas com fibras locais da casca de hibisco, neste caso com o conhecimento que tinha anteriormente como alfaiate. Segundo explicou:
Conseguir a comida necessária era uma dificuldade contínua. Era a tarefa mais difícil, apesar do fato de que se diz que a comida na selva é abundante. Minha dieta incluía mangas, vários frutos secos, caranguejos, lagostins, caracóis, ratos, enguias ou porcos selvagens. Ainda que não tivesse sal para dar sabor ou como conservante, cozinhava os alimentos em leite de coco. Construí pequenas armadilhas e peguei camarões e enguias do rio. Pus coco ralado nas armadilhas para servir de isca.
Prisioneiros japoneses em Guam.
Com os ratos também desenvolveu um tipo de armadilha com arame baseada em um desenho antigo muito comum no Japão. A armadilha media alguns centímetros e ao menor toque da isca fazia que se fechasse. Ao que parece, com o tempo chegou a achar que a carne de rato era muito boa, especialmente o fígado.
De qualquer forma, dizia que não podia se dar ao luxo de se preocupar do que gostava ou não dos alimentos que conseguia. Comia tudo que se mexia e que cruzava seu caminho. Certa vez descreveu como após caçar um porco selvagem ficou muito doente. Aparentemente, não cozinhou suficientemente bem e experimentou fortes dores de estômago durante mais de um mês.
Quanto à água, ainda que abundante e clara, Yokoi sempre a fervia antes de bebê-la como precaução. Para acender o fogo usava uma lente de lanterna que mantinha entre seus pertences mais valiosos.
Prisioneiros japoneses em Guam.
Assim foram passando os dias, as semanas, os meses e finalmente os anos, até que 30 anos depois, ao redor das 18:30, ele escutou o que pareciam duas pessoas falando. E agora sim, voltamos a essa cena do começo onde dois caçadores perceberam algo estranho que se movia entre os galhos. Ambos estavam revisando suas armadilhas para peixes no rio Talofofo quando notaram um ruído.
Dos arbustos emergiu um japonês idoso com aspecto selvagem que carregava uma armadilha para camarões. Assustado pela visão de outros humanos após tantos anos, Yokoi tentou agarrar um dos rifles do caçador, mas debilitado que estava, não era rival para os dois homens.
Yokoi, que nesse momento tinha 57 anos, ainda temia que sua vida corresse perigo e se assustou. Durante todos estes anos tinha sonhado com um primeiro encontro com um de seus superiores, alguém que por fim lhe dissesse que não tinha nada que temer e que podia sair de seu esconderijo.
Os caçadores finalmente dominaram o homem e levaram-no amarrado e ligeiramente machucado. Enquanto era conduzido através da selva, o soldado pediu que o matassem ali mesmo. Temia que o tomassem como prisioneiro de guerra, e isso teria sido a maior vergonha para um soldado japonês e sua família.
No entanto, trataram Yokoi com amabilidade, alimentaram-no antes de levá-lo à polícia, onde o tenente o descreveu como:
- "Um homem alto, magro, pálido, extremamente débil, barba curta, cabelo áspero recortado nas costas, descalço e vestido com bermuda e camisa suja."
Yokoi 1 dia após ser encontrado.
Yokoi se identificou como um sargento do exército e declarou que tinha se escondido na selva junto com outras duas pessoas que haviam morrido oito anos antes, provavelmente de inanição. Também assinalou que a roupa que usava era feita de fibras que ele mesmo tinha tecido.
Yokoi 10 dias depois que foi encontrado.
Posteriormente foi entrevistado no quartel geral da polícia pelo cônsul japonês James Shintaku. Yokoi deu ao cônsul uma lista de familiares que esperava que ainda estivessem vivos no Japão. Também revelou que originalmente tinha dez homens que tinham escapado à selva, e inclusive sabia que era 1972 -ao que parece, seguiu a passagem do tempo pelas fases da lua-.
A volta para o Japão
Yokoi a sua chegada no Japão.
Shoichi Yokoi voltou ao Japão em fevereiro de 1972 e recebeu as boas-vindas com honras de herói. No entanto, o ex-soldado descobriu que a transição de homem solitário a personagem célebre era mais difícil do que pensava. Chegou a Tóquio, onde, rodeado de um grande grupo de meios de comunicação, parecia desconcertado e incapaz de responder as perguntas que lhe faziam. Suas primeiras palavras, transmitidas a nível nacional:
- "Volto pra casa com muita vergonha."
No final de 1972, tentando retomar uma vida normal, Yokoi se casou com Mihoko, 13 anos mais jovem do que ele, e se estabeleceram na cidade de Nagoya. Naquele então, Yokoi já sabia que nunca ia conseguir a paz que teve durante quase 30 anos, se sentia como um estranho em um Japão moderno irreconhecível ao que tinha deixado, com um avanço tecnológico e um desenvolvimento econômico que não entendia.
Dois anos após seu regresso, em 1974, escreveu um livro de grande sucesso com suas memórias, "Private Yokoi's War and Life on Guam", sobre sua experiência na ilha. Nesse mesmo ano postulou sem sucesso para uma cadeira na câmera alta do Parlamento do Japão.
Capa do Livro das memórias de Yokoi.
À medida que o tempo foi passando Yokoi tornou-se mais nostálgico e recordava seus últimos anos em Guam com certa nostalgia, como se preferisse estar lá e não naquela terra que ele não conhecia. De fato, regressou à ilha várias vezes.
A história de Yokoi, como a de Hiroo Onoda que contamos faz um tempo, são tão similares que com frequência são confundidas. Em ambos os casos seus protagonistas lutaram, primeiro para sobreviver solitariamente a décadas de isolamento na selva, e posteriormente para encontrar seu lugar no mundo moderno.
Hoje, o soldado alfaiate do Japão segue sendo uma figura única na história de Guam e é recordado por sua insólita façanha: sobreviver 27 anos na selva... ao que teria que acrescentar "esperando ordens de seus superiores". Algumas de suas posses mais necessárias daqueles anos, incluindo suas armadilhas de enguias, ainda são exibidas em um pequeno museu na ilha.
Shoichi Yokoi morreu em decorrência de um ataque do coração, em 22 de setembro de 1997. Ele tinha 82 anos.
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Comentários
Exemplo de HONRA!
Qual é o brasileiro que é verdadeiramente patriota?
a historia do nosso pais é suja e humilhante
é normal nós nao sermos patriotas
Esse é o tipo de cara que pode falar "Com você e um pacote de bolacha eu passo um mês"
"Não gosto da parte do patriotismo... "
Também não gosto, sou antipatriota.
Essa país não da muitos motivos para ser patriota. Nem falo do governo, falo das pessoas pois o governo é o reflexo do povo.
A densidade demográfica do mdig está crescendo muito os posts estão ficando lotados
Não gosto da parte do patriotismo... por mim, nem deveríam existir fronteiras, mas achei bem interessante a parte dele de ter sobrevivido tanto tempo na floresta, e o que deve ter aprendido por lá também.
gostei muito também da parte de reciclagem, é um exemplo que todo humano deveria seguir, isso aliado ao controle de natalidade e outras medidas úteis, tornaria nossa condição de vida muito melhor, aqui em casa também não desperdiçamos quase nada... metais papelão e plásticos a maior parte são vendidos, comida o que não comemos vai para os animais e o que sobra vira adubo, não é muito mas faço a minha parte... 8)
grande soldado!!!!!
Bela história...por isso admiro os japoneses, msm com suas bizarrices e excentricidades nos dão grandes lições...
O blog agora está sendo alvo de idiotas?
o importante mesmo é que o Grêmio está em PRIMEIRO no ranking da CBF,,
Isso que é patriotismo... um pouco louco, mas incrivel!!
esses ideais nao sao ele e sim implantado na mente dele pelo imperador, patriotismo é bobagem
na devia existir fronteiras, paises, exercitos - o mundo e de todos
na briga dos grandes quem se lasca é o soldado que nao tem nada a ver com a historia e tem que matar o outro soldado que nao fez nada pra ele.
s2 com amor peidinho duku
Incrível esse homem! Que coragem! E como ele defendeu sua Pátria o_o
Cara,a minha cidade tem razao de ser chamada de Forno do Iguaçu!Ta sabe quantos graus aqui?Quase 46!To com calor da bexiga...a fibra da minha piscina derreteu e eu nao posso mais nem me refrescar!Ta quente demais...... 8O 8O
Para o "machão" aí embaixo:
Não acho que ele viveu para o imperador, mas sim para os seus ideais. De qualquer forma, nem adianta explicar isso a alguém que não deve ter nada dentro da cabeça (além de excrementos).
O que eu gostei foi da sua valorização por parte do povo japonês, durante seu regresso ao país. Lá no Japão, o povo reconhece e valoriza o esforço daqueles que realmente se empenham por causas justas. É bem o contrário do Brasil, onde ninguém respeita mais nada, e ainda exaltam jogadores de futebol em época de Copa, como se os mesmos estivessem voltando de uma guerra pela sobrevivência do país.
Brasileiros, dêem mais valor a sua história e aos verdadeiros heróis de seu país. Aprendam com os japoneses.
Realmente um post muito bom..um bom exemplo de como o ser humano é forte e capaz..pena que ele diz que viveu por um homem não por Deus.
Babaca! Viveu pelo imperador e certeza que ele tah poco se lixando pro velhinho.
é realmente o homem nasce bom por natureza a sociedade que o corrompe
Poxa vida... Que belo exemplo de patriotismo. Achei exagerado um pouquinho. Mas é pq aqui no Brasil não temos isso tão forte. Só na Copa do Mundo.
Pronto de novo,so que agora logado!
FIRST DE NOVOOOOOOOOOOOOO