Ocorreu em 24 de agosto de 2001 e ainda é considerado uma das grandes façanhas da aviação. O vôo 236 da Air Transat que fazia a rota Toronto-Lisboa não conseguiu chegar a seu destino. Um fato único que jamais poderia ter ocorrido em um voo comercial: tinham ficado sem combustível com 306 pessoas a bordo. O voo transcorria sem sobressaltos sobre o Oceano Atlântico até as 05:30. Nesse momento aconteceu algo muito incomum: os sensores de alarme do combustível começaram a mostrar um nível anormal nos tanques da asa direita do Airbus A330. |
O capitão Robert Piché -consumado piloto de planadores- pensou que provavelmente se devia a um erro do computador, pois simplesmente não podia acreditar em um vazamento de combustível. Há que ressaltar que naquela época o Airbus não dispunha em suas frotas de nenhum tipo de sensor que fosse capaz de detectar ditos vazamentos.
Alguns minutos depois, Piché ordenou o co-piloto Dirk de Jager, que verificasse através das janelas da cauda se existia alguma fuga, no entanto, a escuridão da noite impediu. O capitão comprovou que o nível continuava baixando de maneira preocupante, então decidiu acionar a válvula de compensação de combustível para realizar a troca do tanque esquerdo pelo direito. Finalmente, quando corroboraram os altos níveis de consumo de combustível, a situação já estava totalmente comprometida.
O caos no amanhecer
O A330-200 implicado no episódio. Via: Wikimedia Commons
Na área dos passageiros ninguém ainda havia se dado conta da situação que estava a ponto de desfazer a paz e tranquilidade que predominava. De fato, pouco depois do amanhecer os 291 passageiros a bordo acordaram e tomaram seu café tranquilamente a milhares de metros sobre o Atlântico.
Tudo mudou em um minuto. De repente, as aeromoças apressaram-se a recolher os pratos e copos dos passageiros. Uma voz nos alto-falantes do avião alertava para que todos tirassem os sapatos e pegassem os coletes salva-vidas debaixo de seus assentos. As máscaras de oxigênio caíram do teto. Os gritos e o terror se apoderaram do vôo. Caos total!
A perda dos motores
De volta à cabine, Piché seguia considerando o erro do computador, de modo que não realizou as mudanças de volume de combustível entre as asas e o depósito central a tempo. Pouco depois das 6 da manhã, o motor direito parou. Só então, o capitão teve que assumir que os dados mostrados nos painéis de controle eram muito reais.
Piché comunicou por rádio que tinha perdido o motor direito, quando então colocou o motor esquerdo a máxima potência e desceu a 30.000 pés, já que não era possível manter a altitude a velocidade de cruzeiro com apenas um motor em funcionamento. 10 minutos depois recebiam a pior das notícias: o motor esquerdo também apagou e com ele toda capacidade geradora de energia elétrica e hidráulica, o avião era um planador gigante.
O Airbus A330-200 bimotor, rumo a Lisboa desde Toronto, estava a ponto de finalizar seu vôo em uma aterrissagem de emergência na área mais próxima: as Açores, a uns 1.300 km de seu destino, e com ambos motores mortos. Se conseguisse, o capitão e sua tripulação estariam ante uma proeza, inclusive acima do mítico incidente Gimli Glider.
A aterrissagem
Ninguém estava preparado para aquele evento. A tripulação a bordo corria nervosa, gritando uns com os outros e com os passageiros em estado de pânico sem poder reagir. As instruções em inglês nos alto-falantes eram tranquilizadoras. No entanto, quando o auxiliar, natural de Portugal, falou em português, desatou o terror. Em sua mensagem deu para perceber a vacilação, a ansiedade, a ponto de chorar ... muitos passageiros começaram a rezar em voz alta e choravam a Deus.
Os motores do turbofan (de reação) do avião, normalmente capazes e muito potentes, ficaram em silêncio. Por sorte, o próprio desenho do Airbus impediu que o avião caísse como um tijolo. Ademais, contava com uma turbina de ar de impacto bem debaixo da asa direita.
Trata-se de uma pequena turbina conectada a uma bomba hidráulica -ou gerador elétrico- em um avião. As turbinas de ar de impacto geram eletricidade pelo giro das hélices impulsionadas pelo fluxo de ar produzido pela própria velocidade da aeronave. A verdade é que os aviões modernos só as utilizam em caso de emergência quando perdem os sistemas primários e auxiliares. Este era sem dúvida um desses casos.
A Ilha dos Açores
Via: Wikimedia Commons
Assim foi como Piché e o restante da tripulação conseguiram um controle mínimo sobre o avião. Agora eram capazes de manobrar com os comandos de vôo, ainda que não contavam com a principal potência hidráulica e os freios alternados. Como dizíamos, tinham em suas mãos um planador gigante, um que levava na parte de trás quase 300 pessoas suplicando a diferentes deuses para que esse não fosse o seu final.
Os controladores aéreos militares das Açores guiaram o avião ao aeroporto com seu sistema de radar. A velocidade de descida do avião era de 600 metros por minuto. Talvez não pareça grande coisa, mas para um passageiro era uma sensação parecida a cair no vazio. Em matéria de segundos passaram das nuvens densas a perceber o panorama real. Logo abaixo o imenso oceano e ao longe um pequeno ponto, uma mancha de terra onde deviam aterrissar.
Uma aterrissagem de emergência, ainda que uma de um filme de catástrofe, sobre um avião sem motores e sem combustível. Piché calculou que tinha menos de 10 minutos para consegui-lo. Os controles de vôo eram cada vez mais difíceis de manejar. A velocidade, conforme se aproximva de terra, era cada vez menor, o que reduzia a eficiência da pequena turbina que fornecia energia elétrica para os parcos controles e instrumentação que ainda funcionavam.
O capitão sabia que tinha uma única oportunidade. Por sorte, Piché era um experiente piloto de planadores e sabia que devia levar à prática uma manobra que é executada com planadores e aeronaves pequenas: mover a roda de controle enquanto realizava pequenos giros bruscos, como se estivesse ziguezagueando, para aumentar as taxas de descida sem aumentar a velocidade. Cada girada era uma montanha russa de terror, os passageiros não viam as Açores, viam como se aproximava irremediavelmente do oceano.
Todos sãos e salvos
Via: Wikimedia Commons
Finalmente, pouco ante das 7 da manhã, o avião aterrissou com toda a força, a uns 310 metros além da cabeceira da pista 33, a uma velocidade de aproximadamente 370 km/h, ricocheteando uma vez e depois voltando a tocar o solo. Foi quando Piché acionou o freio de emergência máximo e o avião deteve-se a 2.300 metros da pista. Quando parou, tinha arrebentado oito dos 10 pneus. No entanto, e o mais importante, tinham conseguido aterrissar sem vítimas fatais.
O incidente aconteceu devido a um erro humano na área de manutenção do avião. Poucos dias antes do incidente trocaram o motor direito por outro enviado pela Rolls Royce. No entanto, ao comprovar que faltavam algumas peças hidráulicas, decidiram instalar peças similares de outro modelo mais antigo que não correspondiam com as do modelo de motor por escassos milímetros. Finalmente, um tubo do sistema hidráulico que resvalava com o tudo do combustível provocou seu rompimento, produzindo o vazamento.
Robert Piché: - "Não sou um herói!"
Via: Virgolia Communication
Dias mais tarde, em resposta a um repórter sobre seu heroísmo, Piché declarou que não se considerava um herói:
- "Eu fui contratado para pilotar aviões e aterrisá-los com todos os passageiros sãos e salvos. Fiz apenas o meu serviço".
Apesar disso, Piché foi louvado pela mídia e foi comemorado como um herói. Pilotos experientes elogiam o capitão por sua capacidade de não entrar em pânico ou tentar fazer um pouso no mar e, por isso, em 2002, ele recebeu o Prêmio Superior de Aeronavegação pela Associação de Pilotos de Linhas Aéreas em reconhecimento por sua habilidade extraordinária na execução exitosa da aterrissagem de um Airbus A330. A história de Robert Piché foi retratada no filme biográfico canadense "Piché: The Landing of a Man", de 2010.
O vôo 236 da Air Transat de 2001 supôs uma proeza da aviação. Os 120 quilômetros que esteve sem motores durante 19 minutos, fazem deste o vôo comercial mais longo da história de um planado não desejado.
Fonte: Globe and Mail.
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