Muito provavelmente você já recebeu um vídeo, via Internet, intitulado geralmente como "Todos que nasceram antes de 1986 deveriam ver esse vídeo". Se você tem mais de 40, é bem provável que reenviou o e-mail, curtiu, compartilhou nas redes sociais ou inclusive salvou no seu HD. O texto original, em inglês, ronda à rede há quase 20 anos, sem um autor conhecido, mas no Brasil, pese que tenha começado a circular lá por 2010, tem até autor brasileiro. |
A verdade é que as gerações "X" e "Y" tem uma relação bem emocional com o seu passado e com as memórias daqueles anos. Assim o referido vídeo/mensagem continua se propagando como uma onda, enaltecendo a liberdade de nossa infância em detrimento dos excessos da tecnologia e das normas de saúde pública dos dias atuais.
É bem verdade que tínhamos mais liberdades e que papai não ia levar ou buscar na escola. Aprendemos mais cedo a lidar com o fracasso e a gozar das vitórias. Tirávamos de letra o bullying e os insultos e as havaianas nos ensinaram o que era responsabilidade e respeito. No entanto há algo nessa mensagem que não cobra nenhum sentido prático e logo no início quando o locutor de voz profunda diz:
- "De acordo com os reguladores e burocratas de hoje, todos nós que nascemos nos anos 60, 70 e princípios de 80, não devíamos ter sobrevivido..."
Bem, pois a verdade verdadeira é que nem todos conseguimos. Basta dar uma olhada no infográfico logo abaixo para descobrir que, segundo dados do IBGE, em 1990 a taxa de mortalidade infantil para cada mil nascimentos no nosso país era 3 vezes maior que os números recolhidos em 2011. Para cada 1.000 nascimentos bem sucedidos em 1990, ao menos 47 não chegava a adolescência. Em 2011 o número de vidas infantis ceifadas baixou para 15.
O maiores avanços foram verificados no Nordeste cuja relação, em 2011, era de 4,5 vezes. Para cada nascido vivo em 1990, ao menos 76 morriam, um número comparável hoje ao da República de Camarões ou Nigéria. Em 2011 o número decresceu para 17. E não duvidemos que esta relação já tenha aumentado ainda mais nos dias atuais. Por outro lado, a melhor Região do país para o desenvolvimento infantil é o Sul. Santa Catarina o melhor estado.
O famoso meme acima corresponde a verdade, mas o verbo está no tempo equivocado: o certo seria "Nem gripe pega", pois a maioria das crianças com o sistema imunológico em pleno desenvolvimento passa pelo impacto benéfico de alguns microorganismo e bactérias, como a Mycobacterium vaccae, que alertam as células T para que comecem a criar anticorpos naturais, desenvolvendo a imunidade natural e ao mesmo tempo "adestrando" os anticorpos para que tenham capacidade de combater germes e bactérias mais nocivas. As vacinas fazem o mesmo usando pequenas doses de agentes patogênicos de forma que preparam o sistema imunológico para o eventual surgimento de uma doença real.
Os avanços na medicina, higiene, vacinação, normas da saúde pública e o aumento do nível e qualidade de vida, em geral, proporcionaram esta maravilha que foi conquistada em muito menos de uma vida humana média... de agora. Mas essas práticas insensatas e o atraso geral da sociedade e da tecnologia também levavam seu quinhão. Por exemplo, com os carros. Aquela prática de entrarmos naqueles baús que recendiam gasolina na parte interna, e ademais inseguros para circular por estradas antiquadas também teve sua culpa no cartório.
Infelizmente não há dados anteriores a 1990. Então não dá para saber ao certo se o indicador do nível de saúde do país seguia uma tendência e quando isso começou. De qualquer forma, para entender a gravidade da situação à época e que as normas de saúde pública seguem em um decrescente nível de mortalidade infantil, basta ver este outro infográfico, com dados recolhidos pela Datasus, do Ministério da Saúde.
Em 1979, 186.400 crianças vieram a óbito no país por motivos vários. Já em 2016, este número chegou a 36.350, uma relação quase 5 vezes menor. Ainda é uma cifra alarmante, mas por outro lado ver o constante decréscimo através da passagem dos anos faz a gente pensar que o futuro será mais promissor para os infantes. Essa possível realidade futura fica ainda mais notória e evidente se levarmos em conta que entre 1979 e 2016 a população brasileira aumentou 76%.
Como neste caso os números tem relação direta com a população, o maior número de óbitos é da Região Sudeste seguida da Nordeste. Os números mostram a franca diminuição ano a ano, Mas ocorreu algum fenômeno estranho, que eu não sei explicar, nos anos de 1982, 83, 84 e 86, tanto no Norte quanto no Nordeste, quando os números fogem estranhamente da curva.
Deveras, pouco a pouco, bem mais devagar do que gostaríamos, a ciência e o progresso vão chegando a lugares nunca visitados por eles. Mas se seguirmos esta linha no sentido inverso, retrocedendo no tempo, a coisa tende a piorar. E não só em assuntos de saúde. Desaparecem os direitos humanos e as liberdade deixam de existir. A justiça vai se transformando em ordálio, Talião, vendetas e ajustes de contas entre clãs.
A democracia, onde e quando existiu, fica restrita a uma elite exclusiva. E onde não, sobra bordoada em joões-ninguém. Em vez do desemprego, que também existiu, encontramos a escravidão. Sim, a do chicote e violações. A diferença entre o que chamam de casta e párias se alarga, e junto a criminalidade. A escassez estende-se tanto que o preço do pão pode resultar em rebeliões e banhos de sangue. Vai desaparecendo este "luxo" de coisas como roupa digna para vestir, um par de refeições ao dia, um médico e medicamentos que curam quando estamos doentes.
Ao retroceder no tempo, o mundo vai se parecendo cada vez mais aos piores buracos da terra para se viver na atualidade, onde imperam a fome, a tirania social e religiosa, as ideologias cegas... o medo. A abstração quimérica sobre uma sociedade passada -uma sociedade concreta e não fantasias- onde a maioria da população viveu melhor do que em qualquer sociedade desenvolvida do presente. Como eu disse em outro artigo, o passado foi um lugar onde a maioria dos turistas práticos e à procura de prazeres não iria nem fodendo, ainda que com as contas integralmente pagas.
De onde diabos então saiu esta idealização do passado? Pois... do passado. Os antigos também pensavam que o seu tempo era uma merda e que certamente existiu um passado muito melhor. Os gregos, já com Hesíodo e Platão, falavam da Era dourada em um passado mitológico que depois degenerou à de prata, bronze, a dos heróis e depois a de ferro, na que eles viviam. E onde cabia esperar que seguisse degenerando à idade de chumbo.
Também encontramos a "edificação" no Satya Yuga, a primeira e perfeita idade dos indianos, quando a mentira e o mal eram desconhecidos. Ou no próprio Jardim do Éden. Os nórdicos antigos também tinham a sua. E a civilização romana era baseada em boa parte no mos maiorum, os costumes de nossos ancestrais, que pelo fato de serem antigos tinham que ser necessariamente melhores ainda que alguns fossem autênticas selvagerias. Não foram os únicos: este culto aos antigos pode ser rastreado desde sempre.
Os gregos, em particular, deram-nos ademais a Arcádia: um sonho bucólico, primitivista, anti-urbano –as cidades foram sempre o foco de toda a degeneração–, estreitamente vinculado a Era Dourada. O curioso é que Arcádia, que é uma região real de Grécia, era por então uma das mais pobres e atrasadas. Na verdade ainda é. Não há nada de particular em Arcádia e só sabemos que existe pelo nome em questão.
Por outro lado a decadente Atenas nos legou uma ou duas coisinhas para a posteridade. A nostalgia pelo passado sempre é acompanhada pela imagem de gente pisando no barro de pés no chão, essa característica rural e anti-urbana, agrária e anti-industrial, e com frequência anti-intelectual e anti-científica. Esta tendência causou tanto impacto que as pessoas "do bem", geralmente endinheiradas, compraram a ideia de que devemos voltar ao campo, ao natural, ao orgânico... tudo isso sem botar o pé no barro, logicamente. Não são poucos os países onde ainda pensam que a autêntica alma da nação está no agro, quanto mais longe das grandes cidades melhor.
Como dizia no último parágrafo, nas últimas décadas, ademais, este... bucolismo adquiriu uma nova forma: o culto ao natural em frente ao artificial. Natural é modinha. Normal para quem nasceu na roça ou sempre viveu perto dela. Florezinhas. Passarinhos. Gatinhos. Ar puro. Belas mulheres bundudas peitudas. Machos barbudos, ou garotos imberbes com rostinhos-bunda-de-bebê. Cobras venenosas. Toxina botulínica. O ebola. A varíola. O discurso enfadonho é de aceitação a diversidade, mas a prática é dos mesmos convencionismos que nos guiaram como espécie nos últimos milhares de anos. Hipocrisia estabelecida com sucesso e vai TNC quem interromper meu lugar de fala.
Voltar ao passado não é boa ideia, já sabemos disso, mas alguns coletivos querem jogar no lixo teorias, práticas de saúde e conservação que levamos séculos para aprender o básico. Mas o arrombado da vez acha que os alimentos não podem conter química, sem se dar conta que ele é composto de carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, fósforo, enxofre em moléculas tão endiabradamente complexas que deixam boquiaberto qualquer um catedrático de Química.
- "Química não... jamais!", brada o escroto que, muitas vezes cheira coca, fuma pedra ou maconha cultivada sobre os mais estritos cuidado de cultivo químicos. Se não fosse por essa química e todas essas coisas "horrorosas" que misturam à comida e demais, estaríamos tão fodidos como estávamos no passado. Nem segurança alimentícia, nem água potável para grandes massas de população, nem leite. Lógico, precisamos descobrir o limiar do que se transforma em câncer, mas sempre levando em conta que antes morríamos, como moscas, de caganeira por desconhecer a química.
Também não esqueçamos da síndrome de Frankenstein. Ou seja, sempre que aparece uma nova pesquisa ou estudo envolvendo algo mais ou menos complexo ou que desafia os tabus estabelecidos pela madre santa religião, estamos brincando de ser Deus ou confrontado o poder de Alá. Aff!
De fato, brincamos com a "supremacia" das crenças desde que aprendemos a utilizar o fogo e inventamos a agricultura. Estamos brincando de ser deidades desde que decidimos nos livrar de um "próximo" -às vezes na base da porrada- que abusava da sua condição de ser próximo. Estamos brincando de ser deuses desde a invenção da medicina, ou da metalurgia. Cada geração ficou aterrorizada com seus correspondentes avanços. Mas é precisamente brincando de ser deuses o que nos tirou das cavernas e nos levou às estrelas.
Em vez das idades do ouro passadas, o que sim podemos vislumbrar é uma flecha dourada que aponta sempre para o futuro. Ao infinito... e além! Qualquer um que estudar a história da humanidade à longo prazo, descobrirá que sempre estamos buscando o melhor. Logicamente que há períodos obscuros e sinistros, que pressagiaram que tudo ia desmoronar. No entanto essas ocorrências tem mais a ver com a ideia de um único tirano do que com o desejo das massas, que se deixaram seduzir pela ideia de supremacia, com base em conceitos tão estúpidos como raça ou divisão de classes. O resultado foi gente morta pela fome e pura carnificina.
Há quem, por esta idealização estúpida, acredite que o passado foi melhor que o presente. Não foi! Para a maioria que viveu ali foi um inferno só aceitável porque, coitado, não conhecia nada melhor, mas se soubesse que chegaria um tempo em que poderia levar seu filho doente a um hospital onde existiriam médicos e enfermeiros de roupas impolutas, antibióticos, analgésicos, e tudo o mais, e que depois poderia levá-lo curado para casa para banhá-lo com água quentinha que sai diretamente de uma torneira, colocá-lo em uma cama sem piolhos, carrapatos ou pulgas, cobri-lo com uma manta com aroma de flores e dar-lhe de comer toda classe de alimentos e água filtrada tratada com flúor, ao certo pensaria que este só poderia ser o paraíso dos deuses benevolentes em suas profecias. Assim assinaria qualquer coisa para nunca mais sair daqui de 2019, mas não poderia. Não sabia assinar, coitado!
De onde sai então esta mitologia da Arcádia feliz? Eu acho que é uma combinação de vários fatores. Por um lado, a simples nostalgia. "Quando eu era jovem..." Por outro, desenganos, autoenganos, injustiças e infelicidades vitais que nos fazem sonhar com mundos melhores; se nos venderam que teve idades douradas, é fácil querer crer nelas.
Também está aí a necessidade de aferrar-se a coisas conhecidas, tradicionais, em um mundo que muda cada vez mais depressa e, às vezes, nos deixa no vácuo a base de chutes. O medo, puro e simples, ao que esse novo mundo possa trazer. A presença de grupos, com pouca ou nenhuma representação estatística, que querem dizer como o mundo deve funcionar
E uma montanha de distorções cognitivas estúpidas, começando pela distorção do sobrevivente: se nós estamos aqui para dizer que íamos 5 num Fusca, Brasília ou Gordini (que saudade de meu pai), ou Mertiolate que ardia como ácido, ou que fizemos quaisquer cagadas sem medo de morrermos, não nascemos em buracos como Cuba, Coreia no Norte, vimos "Dancin' Days"... e estamos aqui para contar história é porque tivemos toda a sorte do mundo, mas muitos, que incorreram em erros estúpidos, não estão aqui para contar.
É verdade que, às vezes, a ciência e o progresso podem trazer seus próprios problemas. Mas, sabe? Não se pode parar o progresso. Pese que, muita vezes, na ausência de argumentos, já fui acusado de cientificista. Não me alcança como insulto porque a ciência é parte de nossa natureza, de nossa curiosidade. Precisamos da ciência, mas temos que assegurar do estudo de seu impacto adequadamente antes de usá-la. Comprovada a teoria devemos mandar os conspiranoicos à merda. E isto só pode ser feito melhorando a ciência, fazendo melhor ciência. Fazer menos ciência resulta bem mais perigoso do que fazer mais ciência.
Carl Sagan dizia que se não somos capazes de pensar por nós mesmos, se somos relutantes a questionar a autoridade, então somos só marionetes nas mãos dos poderosos.
- Se os cidadãos forem educados e são capazes de formar sua própria opinião, então os que estão no poder trabalharão para nós. Em todos os países, deveríamos ensinar nossos filhos o método científico e as razões pelas quais existe uma Declaração de Direitos. E com isso, uma verdadeira dose de honestidade, humildade e espírito comunitário. No mundo assediado pelos demônios onde vivemos pelo mero fato de sermos humanos, isto pode ser tudo o que nos separa da escuridão."
E tinha razão. Todos os problemas da ciência e do progresso são corrigidos com mais ciência e com mais progresso. Nunca voltando atrás. Jamais voltando atrás. Em primeiro lugar, porque não há nenhum lugar no passado para celebrar além de nossas memórias. Ainda que algumas coisas pareçam atemporais, a verdade é que o mundo muda constantemente e esse passado ao que voltar já não existe nem voltará a existir...
Em verdade, segundo um fascinante estudo, quando lembramos de um fato antigo, estamos apenas lembrando da última vez que recordamos dele. E cada vez que isso acontece a recordação perde força e realidade. Ao contrário, quando tentamos esquecer um episódio lamentável, mais detalhes e tristeza ficarão marcados na nossa RAM. Pode parecer contraproducente, mas cada vez que você lembra de um momento feliz, mais está o idealizando e quanto mais se esforça para esquecer de uma merda, mais estará fomentando a ideia de como você foi tão infeliz.
Não há nada no passado que nos conduza a um mundo melhor. Essas eras douradas da Antiguidade seguem sendo tão mitológicas como foram nos tempos de Hesíodo e Platão. São só miséria, tirania, abusos, fome, superstição, doença e morte. E não há um caminho intermediário: toda a sociedade que não avança, retrocede. Mas retrocede ao nada. O que nos resta é seguir brigando para criar um mundo ainda muito melhor. Esqueçamos àquela Arcádia infeliz.
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Comentários
Esta história de dizer que o passado foi bom é mesmo uma idiotice. Temos boas lembranças claro, mas certamente se pudéssemos reviver alguma coisa seria a partir do tempo presente.
Ótimo! Por textos como esse eu amo o MDIG.
Alguma coisa deixou o Luisão bravo. Rsssss. Fazia tempo que ele não escrevia assim!
Muito bom... mesmo!
Esse vídeo é uma tentativa de glamourizar, se é que existe essa palavra, a nossa infância. Provavelmente se a geração anterior fizesse um vídeo semelhante falaria que era melhor que a proxima e assim por diante.
Eu tive toda a gama de doenças infantis: caxumba, infecção intestinal, meningite, catapora, rubéola, encefalite... e sobrevivi. Meus filhos nenhum deles teve uma doença sequer dessas. E a isso eu sou muito grato!
O avanço da tecnologia somada ao acesso a alimentos de melhor qualidade e vacinação ampla permitiu isso. E por isso eu vou na maré contrária do video, quanto mais nova geração mais privilegiada e sortuda a mesma!
Ótimo texto. Obrigado por escreve-lo.