Embora os europeus nos séculos 16 e 17 chamassem os indígenas americanos de "selvagens" por comer outras pessoas e condenassem os católicos por acreditarem na transubstanciação -que o pão e o vinho servidos na missa literalmente se transformavam no corpo e sangue de Jesus-, o canibalismo era considerado aceitável. Padres, cientistas e realeza, entre outros, ingeriam regularmente os ossos, sangue e gordura de cadáveres mumificados na tentativa de curar uma variedade de doenças. |
Os ingredientes mais comuns no início eram ossos; os médicos trituravam as múmias egípcias em um pó que usavam para parar o sangramento interno. Os médicos costumavam prescrever bandagens embebidas em gordura humana para curar problemas de pele.
Os médicos também acreditavam que a ingestão de crânios humanos poderia curar qualquer coisa, desde dores de cabeça até epilepsia. O médico inglês Thomas Willis, co-fundador da Royal Society, inventou uma mistura de crânio humano misturado com chocolate para curar a apoplexia em seus pacientes, e o rei Carlos II da Inglaterra costumava beber pó de crânio humano junto com álcool para curar sua depressão.
O musgo cresce nos crânios à medida que eles se decompõem, e os primeiros europeus modernos costumavam colhê-lo para encher suas cavidades nasais e parar sangramentos nasais.
Sangue fresco também era valorizado, mas era difícil de encontrar. Aqueles que queriam experimentar os benefícios de saúde, mas não podiam pagar as tinturas e os pós, muitas vezes participavam de execuções públicas, onde pagavam uma pequena taxa para obter uma xícara de sangue da pessoa recém-falecida.
O livro da historiadora Louise Noble, "Canibalismo Medicinal na Literatura e Cultura Inglesa da Idade Moderna", revela que por várias centenas de anos, No auge nos séculos 16 e 17, muitos europeus, incluindo a realeza, padres e cientistas, rotineiramente ingeriam remédios contendo ossos humanos, sangue e gordura como remédios para tudo, desde dores de cabeça até epilepsia.
Havia poucos oponentes vocais à prática, embora o canibalismo nas Américas recém-exploradas fosse insultado como uma marca de selvageria. Múmias foram roubadas de tumbas egípcias e crânios foram retirados de cemitérios irlandeses. Coveiros roubavam e vendiam partes de corpos.
Mesmo no auge da medicina do cadáver, dois grupos foram demonizados por comportamentos relacionados que foram considerados selvagens e canibais. Um eram os católicos, a quem os protestantes condenavam por sua crença na transubstanciação. O outro grupo era de nativos americanos; estereótipos negativos sobre eles foram justificados pela sugestão de que esses grupos praticavam o canibalismo.
- "Parece pura hipocrisia. As pessoas da época sabiam que a medicina do cadáver era feita de restos humanos, mas através de alguma transubstanciação mental própria", diz Beth Conklin, antropóloga cultural e médica da Universidade Vanderbilt que estudou e escreveu sobre canibalismo nas Américas.
Beth encontrou uma diferença distinta entre a medicina de cadáveres europeia e o canibalismo do Novo Mundo que ela estudou.
- "A única coisa que sabemos é que quase todas as práticas canibais não ocidentais são profundamente sociais no sentido de que a relação entre quem come e quem é comido é importante", explica Beth. - "No processo europeu, isso foi amplamente apagado e tornado irrelevante. Os seres humanos foram reduzidos a uma simples matéria biológica equivalente a qualquer outro tipo de medicamento básico."
A hipocrisia não foi totalmente ignorada. No ensaio do século XVI de Michel de Montaigne "Sobre os canibais", por exemplo, ele escreve sobre o canibalismo no Brasil como não pior do que a versão medicinal da Europa, e compara ambos favoravelmente aos massacres selvagens das guerras religiosas.
À medida que a ciência avançava, no entanto, os remédios canibais morreram. A prática diminuiu no século 18, na época em que os europeus começaram a usar regularmente garfos para comer e sabão para tomar banho. Mas há alguns exemplos tardios de remédios para cadáveres: em 1847, um inglês foi aconselhado a misturar o crânio de uma jovem com melado e dar à filha para curar sua epilepsia. Uma múmia foi vendida como remédio em um catálogo médico alemão no início do século 20. E em 1908, uma última tentativa conhecida foi feita na Alemanha para engolir sangue no cadafalso.
Isso não quer dizer que deixamos de usar um corpo humano para curar outro. Transfusões de sangue, transplantes de órgãos e enxertos de pele são exemplos de uma forma moderna de medicina do corpo. Na melhor das hipóteses, essas práticas são tão ricas em possibilidades poéticas quanto as múmias encontradas na Europa, pois sangue e partes do corpo são dados livremente de um humano para outro.
Mas Louise aponta para sua encarnação mais sombria, o mercado negro global de comércio de partes do corpo para transplantes. Seu livro cita notícias sobre o roubo de órgãos de prisioneiros executados na China e, mais perto de casa, de uma quadrilha de roubo de corpos na cidade de Nova York que roubou e vendeu partes de corpos dos mortos para empresas médicas.
- "É um eco perturbador do passado. É aquela ideia de que uma vez que um corpo está morto, você pode fazer o que quiser com ele", conclui a Historiadora.
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Comentários
Possibilidades poéticas, gostei