Muito antes da Internet, da televisão, e das redes sociais, o cinema era o veículo mais poderoso de comunicação da primeira metade do século XX, junto ao rádio. Em tempos de comunicação mais remota, ele permitia uma estrela de cinema ser reconhecida e idolatrada em todos os cantos do planeta. Se hoje uma "It Girl" é alguma espécie de influencer bonitinha e descolada do momento, que frequenta muitas festas e tem dinheiro à vontade, não era bem assim quando surgiu o termo, na Inglaterra, e o mesmo estourou nos EUA anos depois. |
A romancista e roteirista inglesa Elinor Gryn difundiu o termo "it" como sinônimo de graça, charme e sex appeal em suas obras picantes e personalidade extravagante no começo do século passado. Apesar do termo provir de antes do sucesso da escritora, foi ela quem popularizou o termo, que pode ser associado a Clara Bow, que foi o primeiro sex-symbol da história e a primeira estrela polêmica da sétima arte ajudando com isso a impulsionar a própria popularidade do cinema.
Em sua carreira de 12 anos, ela encenou em 46 filmes mudos e 11 sonoros e era tida como o primeiro trunfo de bilheteria, chegando a receber mais de 45 mil cartas de fãs em um único mês. Além de ser a it-girl original, ajudou a inspirar a icônica personagem Betty Boop com seu jeito travesso e sincero. No entanto, foi também a primeira vítima da toxicidade de Hollywood.
Clara Gordon Bow nasceu em 29 de julho de 1905, no Brooklyn, Nova York, em um lar pobre e disfuncional. Presa em uma favela com o pai abusivo e uma mãe com problemas mentais ela percebeu que só iria sobreviver se virasse artista, porque não tinha nenhuma possibilidade de estudar.
Aos 16 anos, contra a vontade de sua mãe, mas com o apoio do pai, Clara competiu no concurso anual de atuação nacional da revista "Fame and Fortune", no outono de 1921. Em anos anteriores, outras vencedoras do concurso encontraram trabalho no cinema. Um membro do set declarou mais tarde que quando Clara fez a cena de teste, ela realmente se tornou sua personagem e "viveu isso". Ela foi sagrada a vencedora do concurso, ganhou um vestido de noite e um troféu de prata, e a editora se comprometeu a ajudá-la a "ganhar um papel em filmes".
Bow foi apresentada ao diretor Christy Cabanne, que a escalou para "Beyond the Rainbow", produzido no final de 1921 e lançado em 19 de fevereiro de 1922. Clara fez cinco cenas e impressionou Christy com sua habilidade de produzir lágrimas sob demanda, mas foi cortada da impressão final do filme, ainda que seu nome continuou na lista do elenco entre as outras estrelas.
Quando sua mãe descobriu que Clara tinha participado do concurso, invadiu seu quarto à noite com uma faca de açougueiro alegando que ela iria para o inferno por suas escolhas e foi salva pelo pai. A mãe foi internada dias depois e Clara desenvolveu um grave problema de insônia antes de conseguir um emprego de ajudante de escritório. Incentivada por seu pai, Clara continuou a visitar agências de estúdio pedindo papéis.
- "Mas sempre havia algo comigo", disse Clara em entrevista anos mais tarde. - "Eu era muito jovem, ou muito pequena, ou muito gorda. Normalmente eu era muito gorda."
Eventualmente, o diretor Elmer Clifton precisava de uma moleca para seu filme "Capitães do Mar", de 1922, viu as fotos de Clara no concurso e mandou chamá-la. Em uma tentativa de superar sua aparência jovem, Clara prendeu o cabelo e usou um vestido de sua mãe. Elmer decidiu contratar Clara e ofereceu a ela US$ 35 por semana. Clara pediu US$ 50 e Elmer concordou, mas ele não sabia dizer se ela "se encaixaria no papel". Clara soube mais tarde que um dos subeditores da "Fame and Fortune" havia insistido com Clifton para lhe dar uma chance.
Em meados de dezembro de 1923, principalmente devido aos seus méritos em "Capitães do Mar", Clara foi escolhida a atriz revelação do ano e começou a atrair novos papéis secundários até ser contratada para ser a protagonista de "Grit"", de 1924, uma história que tratava de crimes juvenis e foi escrita por F. Scott Fitzgerald.
Clara roubou a cena por levar um frescor e uma naturalidade nunca antes vista na arte que ainda aprendia a transpor a atuação dos teatros para as telas com seus olhos grandes o rostinho de bebê e um jeito enérgico seguro e despreocupado. Sua personalidade forte conseguiu fluir com facilidade entre uma jovem boba divertida e uma mulher sensual e espontânea e aquilo ganhou as pessoas e a crítica de uma forma única.
Ao contrário de artistas que criavam personas diferentes de sua personalidade real, Clara era uma travessa de verdade, uma jovem que na infância na pobreza se comportava como um menino da época para ser aceita. Mesmo durante a fama ela não via problemas em assumir cabelos curtos e um estilo semelhante ao dos homens no início da década de 1920 pós primeira guerra mundial. Ela se tornou o ícone para uma legião de mulheres modernas e os estúdios viram ali uma forma de obter muitos lucros.
A linda moleca baixinha, sem pregas na língua, se tornou um fenômeno, a ponto de que os produtores a chamavam para estrelar filmes com base que ela rendia pelo menos o dobro do orçamento da produção dos filmes. Em seu auge ela chegou a atuar em 3 filmes ao mesmo tempo.
- "Trabalhei em dois e até três filmes ao mesmo tempo e desempenhei todo tipo de papéis em todos os tipos de filmes", disse Clara mais tarde à revista Photoplay. - "Era muito difícil e eu costumava ficar exausta e chorar até dormir após 18 horas encenando os diferentes papéis."
Em meados de 1925 seu apelo era tão grande que seu estúdio emprestava Clara para outros produtores por quantias entre 1.500 a 2 mil por semana enquanto ela só recebia meros 200 há 750. Sua autenticidade, no começo considerado um charme, acabou se tornando um problema para ela. Durante o funeral de sua mãe, ela chamou todos os presentes de hipócritas antes de sapatear em cima do túmulo.
Seu pai também vivia invadindo os set de gravação bêbado para assediar outras atrizes. Então ela fez ele casar com a sua amiga Tui Lorraine que na época precisava de um visto permanente.
Apesar de ter sido a atriz mais popular da sua época e a primeira sex-symbol da história, o fardo foi muito pesado para a ruivinha aguentar. Como era desbocada, falava de sexo abertamente (uma espécie de Dercy), as críticas não demoraram a chegar. Certa vez ela disse que Gary Cooper tinha uma "piroca enorme", mas uma bunda de lavar roupa.
Após a Grande Depressão a percepção sobre Clara mudou diametralmente. Ela foi atacada nos tabloides como um símbolo da absoluta baixeza da indústria do entretenimento. Ela já não era muito querida entre as outras atrizes devido a seu grande sucesso e isso só fez piorar.
Clara se tornou a primeira cancelada de Hollywood. E olha, que seu cancelamento pela mídia americana seria algo muito degradante, humilhante e ignominioso inclusive nos dias de hoje, depois que sua invejosa agente Maxine Alton vazou registros pessoais falsos sobra sua vida.
Revistas de fofoca publicaram alegações de que a atriz bebia como um gambá, gostava de aventuras, bacanais e até bestialidade. Mesmo quando Maxine foi presa por chantagem, o estrago já estava feito e artigos cobravam que a Paramount cancelasse o contrato dela e isso ocorreu em 1931, quando Clara sucumbiu a um colapso nervoso e foi internada em um sanatório com apenas 25 anos, quando apenas dois anos antes em 1929 ela estava sendo aclamada no primeiro evento do Oscar por seu protagonismo em "Asas.
Nesse período, a imprensa relacionou Clara a uma personagem que ela representou em 1927 dramalhão mudo "Filhos do Divórcio", de 1927, que se desenrola em torno de um trio romântico formado por Clara, como Kitty, e seus amigos Esther Ralston, como Jean, e Gary Cooper -com quem Clara teve um tórrido romance-, como Ted. Todos os 3 personagens são filhos de pais divorciados -daí o nome do filme-. O enredo explora o estigma social do divórcio que na época era considerado um tabu e visto como um escândalo social.
Na cena que você vê abaixo, Kitty se casa com Ted, mesmo sabendo que ele amava Jean, durante uma festa de arromba onde ele bebeu até o juízo, não se lembra de nada na manhã seguinte e se assusta quando vê a melindrosa Kitty na sua cama.
O filme, do diretor Frank Lloyd, quase foi jogado na lata de lixo da história quando os executivos da Paramount descobriram que a produção já tinha gastado mais de um milhão de dólares, mas um acordo realizado com Frank rendeu frutos quando ele prometeu entregar o filme em 3 dias.
O filme foi um sucesso de bilheteria e rendeu 8 vezes mais do que o valor da produção, algo inédito para aqueles anos, em que o dobro era um lucro considerável. A razão deste sucesso: a verdadeira personificação dos anos 20: Clara Bow.
Aos 40 anos Clara foi diagnosticada com esquizofrenia e sua última aparição foi dando entrevista em uma rádio com uma voz misteriosa. O que é irônico uma vez que ela odiava filmes sonoros por serem limitantes na encenação mais rica só possível nos filmes. Ela ainda se casou, teve dois filhos, passou por tentativas de suicídio nos anos 40 e morreu sozinha com um ataque cardíaco fulminante em uma fazenda em 1965 aos 60 anos.
- "Você pensa em Greta Garbo, Lillian Gish, todos esses grandes nomes de grandes atrizes", disse o historiador de cinema Leonard Maltin em 1999. - "Clara Bow era mais popular em termos de bilheteria e em termos de levar consistentemente o público aos cinemas. Ela estava no topo."
O historiador de cinema Kevin Brownlow não mencionou Clara em seu livro de 1968 sobre filmes mudos, "O Desfile Acabou", considerado um grande clássico do assunto. A atriz Louise Brooks, considerada inimiga de Clara, que recebeu um capítulo inteiro no livro, escreveu para Kevin.
- "Você ignora a grande Clara Bow por uma flapper desimportante como eu?, perguntou Louise. - "Clara só fez os três melhores filmes do cinema mudo, que nunca serão superados: 'Loucuras de Mães', 'Provocação de Amor' e 'It'."
Em uma conversa com o cineasta Thomas Hamilton, Kevin explicou que havia planejado incluir um capítulo sobre Clara, mas não conseguiu garantir uma entrevista com a estrela reclusa antes de sua morte e, como todos os capítulos eram baseados em relatos de primeira mão, seria inconsistente incluir um capítulo baseado em histórias de segunda mão. Kevin compensou essa omissão incluindo um segmento inteiro sobre Clara em seu documentário de televisão "Hollywood: Uma Celebração do Cinema Mudo Americano", de (1980).
Por suas contribuições à indústria cinematográfica e para corrigir a injustiça que a imprensa cometeu com Clara, ela foi premiada postumamente com uma estrela de cinema na Calçada da Fama de Hollywood em 1970. Em 1994, ela foi homenageada com uma imagem em um selo postal dos Estados Unidos, desenhado pelo caricaturista Al Hirschfeld.
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