Honora Kelley tinha 6 anos em 1863, ano em que seu pai a entregou, junto a irmã Delia Josephine, de 8, a um orfanato em Boston, nos EUA. Sua mãe havia morrido de tuberculose, e esse pesar, junto com a discriminação aberta que os imigrantes irlandeses enfrentavam nos Estados Unidos, levou seu pai, Peter Kelley, um alfaiate, à pobreza e ao alcoolismo. Peter outorgou seus direitos paternos ao orfanato, para que as filhas pudessem ter uma vida melhor que ele não podia oferecer. Mal sabia ele que, devido as circunstâncias miseráveis do orfanato, estava a ponto de nascer um "anjo da morte". |
Fotograma de um documentário japonês sobre Jolly Jane Toppan.
Pouco tempo depois correu um boato horroroso que Peter, o "maluco", como era conhecido o pai de Honora, havia costurado as próprias pálpebras. Certamente uma mentira -como alguém, mesmo um alfaiate, poderia cozer as próprias pálpebras?-, mas a história assombrou a jovem Honora ao longo de seu tempo no orfanato. Verdadeiro ou falso, o boato sobreviveu porque serviu como uma história de origem apropriada para uma mulher que se tornaria a mais notória serial killer de sua época.
De Delia Josephine pouco se sabe além de que se tornou prostituta e morreu como uma alcoólatra indigente. A irmã mais velha Nellie, que não foi levada para o orfanato, trabalhou a vida inteira em um manicômio, mas a história de Honora Kelley, pelo menos em parte, é um exemplo trágico do pior cenário das pressões exercidas sobre as mulheres marginalizadas no período vitoriano.
No orfanato, Honora estava ansiosa para agradar todo mundo, seja completando suas tarefas e outros treinamentos para ser adotada, ou contando histórias, muitas vezes mentiras, para ganhar o afeto de outros órfãos. Sua narrativa foi desencorajada, especialmente quando ficou sob a tutela de uma viúva severa, a Dona Ann C. Toppan, que a escolheu, apesar de Honora ser quatro anos mais nova que a maioria das garotas. A Dona Ann, ou "tia", como ordenou que Honora a chamasse, ensinou a garota a se odiar. Ela foi punida por contar histórias, ensinada a esquecer qualquer sotaque irlandês, e obrigada a mudar seu nome para Jane Toppan, que soava mais inglesa, embora não tenha nunca sido adotada oficialmente.
Não há muitos registros da jovem Jane vivendo na casa dos Toppans, mas ela continuou morando com eles, como empregada doméstica, após o seu aniversário de 18 anos, crescendo na sombra da filha da "tia", Elizabeth, que tinha todo o privilégio e riqueza que Jane desejava. Elizabeth e Jane originalmente se consideravam irmãs, até que a Dona Ann puniu severamente Jane por insinuar ser da família. Para entender bem a história, mesmo depois da morte, quando a tia morreu, Jane foi encarregada de organizar o funeral, apesar de ter sido excluída do testamento. Seu ressentimento estava cimentado.
Jane ficou como empregada doméstica de Elizabeth e seu marido, Oramel Brigham, por 10 anos, antes de ter coragem de se candidatar à concorrida escola de enfermagem. Como no orfanato, Jane era a favorita entre os médicos e com muitos de seus pacientes. Ela antecipava as necessidades deles antes mesmo de perceberem que tinham, e sempre administrava alegremente os medicamentos, o que lhe rendeu o apelido de "Jolly Jane".
Suas colegas estudantes de enfermagem, no entanto, se ressentiram dela. Ela era um gênio, trabalhava em turnos desumanos, mesmo para os padrões de enfermagem, sempre com um sorriso no rosto e todos os pacientes a amavam. As outras alunas tentaram caluniá-la para que fosse despedida, dizendo que gastava seu pequeno salário em cerveja ou que se esbaldava na noite. Embora certamente fosse culpada por parte dessas "infrações", pois pela primeira vez na vida podia fazer o que bem queria, ela fingiu indignação e conseguiu colocar a diretoria do hospital a seu favor, resultando na demissão de duas enfermeiras "fofoqueiras". A alegria de Jane com o desenlace da história chocou até seus amigos mais próximos.
Alguns de seus pacientes começaram a se ressentir dela também, sussurrando aos médicos que alguém ouviu Jane dizendo que não havia sentido em manter os idosos vivos. Os médicos descartaram suas preocupações, convencidos de que Jane era uma boa enfermeira, a melhor e mais "boazinha" de todas, diziam. Se muitos de seus pacientes morriam, bem, era uma época em que muitos pacientes fizeram exatamente isso, devido a complicações de procedimentos experimentais, de sepse ou outras infecções comuns.
Mas Jane também estava os matando, um a um. Ela envenenou a própria amiga e paciente, Myra Connors, quando esta desconfiou dos medicamentos que Jane administrava. Alguns dias antes, Jane visitara a irmã e, ninguém sabe exatamente por qual motivo, matou a governanta da casa também por envenenamento. A ira contra Elizabeth estava apenas começando.
De acordo com o testemunho de uma das únicas vítimas sobreviventes de Jane, Amélia Phinney, conforme relatada no best-seller "Fatal: a vida venenosa de uma assassina em série", Amélia estava com uma dor excruciante depois de ter uma úlcera uterina queimada com nitrato de prata. Quando Jane ouviu seus gemidos, entrou no quarto de Amélia e sentou-se na beira da cama.
- "Como você está se sentindo, querida?", perguntou.
- "Muita dor. Eu não aguento", disse Amélia contraindo os pulsos contra o peito. - "Por favor. Um médico."
Jane sorriu e disse:
- "Não há necessidade disso. Eu tenho algo que vai fazer você se sentir melhor."
Amélia ouviu um comprimido cair no copo de água ao seu lado, seguido do som de uma colher batendo no fundo do mesmo enquanto a enfermeira mexia. Jane então deslizou o braço sob o travesseiro da paciente e levantou sua cabeça.
- "Aqui, querida", ela disse. - "Beba isso."
O amargor secou sua boca de imediato, e Amélia supôs que era um remédio para diminuir sua dor. Mas, de fato, era atropina, um medicamento derivado da beladona que, combinado com os efeitos de uma administração anterior de morfina, acelera os efeitos de ambos. A visão de Amélia turvou quase imediatamente e sua respiração ficou lenta e ofegante.
Jane enrolou o cabelo de Amélia em seu punho, pressionou sua cabeça gentilmente contra o travesseiro e, com a mão livre, abriu as pálpebras de Amélia para ver se suas pupilas estavam dilatadas. Foi quando Jane pegou o copo de água e a atropina e levantou a cabeça da paciente novamente. Quando Amélia Phinney sentiu o copo contra os lábios, fechou a boca.
- "Vamos minha querida. Beba um pouco mais", disse Jane em voz baixa, mas Amélia desviou a cabeça quando outra enfermeira veio pelo corredor bem a tempo.
Na manhã seguinte, envergonhada e sem saber ao certo o que havia acontecido, Amélia atribuiu a cena a um sonho febril e não contou a ninguém.
Não demorou muito, porém, para que os médicos deixassem de ignorar as queixas contra Jane, por mais convencidos que estivessem de sua lealdade e competência. Em sua confissão posterior, Jane estimou que tenha usado a mesma prática com pelo menos uma dúzia de pacientes, mas prontamente ressaltou que trouxe também de volta à vida alguns casos muito graves de febre tifóide.
Jane foi demitida do Hospital Massachusetts General em 1887, mas recebeu uma recomendação para o Hospital de Cambridge. No entanto, ela também foi demitida pouco depois, por queixas semelhantes. Ela deixou o hospital da mesma maneira que deixou o anterior, sem a certificação de enfermagem.
Quando mais tarde lhe perguntaram sobre sua perda de credenciais, ela disse à imprensa não ligava.
- "Eu posso ganhar mais dinheiro e ter mais tempo para mim mesma trabalhando como cuidadora particular." E com sua autoconfiança infalível, ela fez isso.
Jane trabalhou em muitos lares como enfermeira de atendimento direto em período integral e, quando se cansou de cuidar de pacientes idosos e agitados, passou por uma overdose, primeiro de morfina e depois de atropina, medicamentos com sintomas contrários que ajudaram suas experiências a serem detectadas. Ela revelou em sua confissão que não fazia isso rapidamente, mas saboreava o poder de levar suas vítimas à beira da morte e depois trazê-las de volta à vida, observando o tempo de todo os efeitos.
No verão, quando não atendia pacientes individualmente, Jane ficava na Jachin House, uma pousada em Cape Cod, propriedade da família Davis. Embora fossem da classe média alta, a família Davis havia sido um pouco excluída pela sociedade. O patriarca, Alden, defendeu o líder da seita religiosa Charles Freeman em um episódio simplesmente horroroso que já contamos aqui no MDig, quando Freeman supostamente ouviu a voz de Deus dizendo para assassinar sua filha Edith décadas antes.
Jane, no entanto, estava feliz com o verão na Casa Jachin e foi ali que também chocou sua irmã adotiva, Elizabeth Brigham, ao convidá-la para uma visita. As duas foram a um piquenique à beira do lago antes de voltarem para a pousada para beber um copo de água, quando Jane anteriormente havia colocado a tampa de volta em uma garrafa de sua marca favorita de água mineral, depois de adicionar estricnina ao seu sabor já amargo. Elizabeth entrou em coma e Jane ligou para o marido, Oramel, enquanto continuava a aumentar gradualmente a dosagem de morfina com injeções que, segundo a ciência vitoriana, deveriam aliviar sua dor. Elizabeth Brigham morreu pouco depois.
- "Ela foi realmente a primeira das minhas vítimas que eu realmente odiava e envenenei com um propósito vingativo", confessou Jane mais tarde. - "Então eu a deixei morrer lentamente, com uma tortura emocionante. Eu a segurei em meus braços e observei com prazer enquanto ela ofegava por sua vida."
Após o assassinato de Elizabeth, Jane ajudou a organizar o funeral e depois voltou a cuidar das casas de pacientes idosos, continuando a aumentar sua contagem de corpos, contando com o amor daqueles pacientes. Neste meio tempo, Jane tinha contraído uma dívida substancial na hospedagem da pousada e quando Mattie Davis, esposa de Alden, foi cobrá-la, ela administrou água com estricnina para a mulher também. A "boa" Jane, zelosa como sempre, agora passaria a cuidar dos Davis com a ajuda de seus filhos.
Após a morte de Mattie, Jane continuou na Casa Jachin para cuidar dos membros restantes da família, que ela assassinou um a um. Ela fingiu cuidar das duas filhas adultas, que mergulharam em um estado de melancolia e histeria após a morte da mãe. A enfermeira inclusive acalentou no colo o filho da mais velha quando a mãe dele morria no andar de cima.
Jane tentou várias vezes incendiar a pousada, destruir os registros de sua dívida financeira com os Davis. Embora Alden sempre tivesse problema para dormir, seu novo status de viúvo solitário intensificou sua insônia, e ele estava acordado para sentir a fumaça e extinguir as numerosas tentativas de incêndio. Cada vez que Jane percebia seu fracasso, fingia pânico e o ajudava a impedir seu próprio incêndio criminoso. Finalmente, ela voltou ao seu método favorito de assassinato e matou o patriarca idoso com outra overdose.
Jane então fugiu para Cataumet, Massachusetts, com a intenção de seduzir e se casar com Oramel Brigham, o viúvo da irmã adotiva Elizabeth. Mas Oramel -e agora também a polícia- suspeitava de Jane, afinal ele perdeu a governanta, a esposa e mais recentemente perdera a irmã, Edna Bannister, depois que esta acusou Jane de ser a causadora de toda aquelas tragédias. Por suposto, Jane envenenou Edna também. Oramel decidiu não correr o risco e a mandou embora, mas, em vez disso, ela decidiu subir ao sótão onde morara quando menina.
Mais tarde, ela disse que, entrando naquele local, se sentiu como se estivesse entrando em uma névoa quente e pesada. Sentou-se levemente no canto da cama, pegou a garrafa de morfina na bolsa de remédios, esvaziou os comprimidos na palma da mão, contou 30 e engoliu dois de cada vez. Oramel a descobriu antes que a droga fizesse efeito e ligou para os médicos que purgaram a morfina de seu corpo. Quando acordou, ela se injetou com morfina e tentou se matar novamente. Os médicos a trouxeram de volta à vida pela segunda vez.
- "Estou cansada da vida", disse ela. - "Eu sei que as pessoas estão falando de mim. Eu só quero morrer."
As pessoas estavam realmente falando sobre ela, de fato, quando foi internada no hospital; o detetive John S. Patterson estava disfarçado em uma ala adjacente, investigando as mortes de toda a família Davis. Com efeito ele já sabia que a filha caçula de Alden Davis, Minnie havia sido envenenada.
Jane foi presa logo após sua alta do hospital, na terça-feira, 29 de outubro de 1901. Durante seu encarceramento, recebeu muitas cartas de solidariedade de pacientes e de médicos, que a admiravam. Um amigo de infância até atuou como seu advogado de defesa. Quando ela foi condenada, com um veredicto de "culpada, mas insana", Jane não se preocupou, de fato, ela insistiu em sua sanidade durante o julgamento:
- "Como posso ser louca? Quando matei as pessoas, sabia exatamente o que estava fazendo."
Logo após o julgamento, um jornal local noticiou uma suposta confissão da enfermeira ao seu advogado, onde afirmava ter matado mais de 31 pessoas, dizendo que sua ambição era mesmo "ter matado mais pessoas desamparadas do que qualquer outro homem ou mulher que já vivera".
Jolly Jane Toppan viveu o resto de sua vida no Hospício Estadual de Taunton, no Condado de Barnstable, Massachusetts, onde acabou sofrendo de demência. Não se sabe ao certo a data de sua morte.
No final, ela insistia para que os psiquiatras e pessoal médico a chamassem de Honora. Em um momento raro de lucidez, após a demência, ela disse a uma de suas enfermeiras -falando sobre os outros pacientes-:
- "Querida, você e eu poderíamos nos divertir tanto. Quer se livrar deles? Me pergunte como."
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Comentários
Pra quem gosta deste tipos de relatos interessantes ,o livro SERIAL KILLER-LOUCO OU CRUEL,da Ilana Casoy é uma ótima pedida.