Se humanos desaparecessem amanhã, cerca de 1 bilhão de cães ficariam sozinhos. A primeira pista para saber se os cães sobreviveriam está nos dados demográficos básicos das populações caninas atuais. Esses bilhões de cães ocupam todos os cantos do globo, exploram diversos nichos ecológicos e vivem em uma ampla gama de relacionamentos com humanos. Embora muitas pessoas, quando solicitadas a imaginar um cão, pensem em um companheiro peludo enrolado no sofá ao lado de um humano ou o arrastando na ponta de uma trela pela rua, a pesquisa indica que apenas 20% dos cães vivem como animais de estimação. |
Sim, os outros 80% dos cães do mundo são livres, um termo genérico que inclui cães de aldeia, de rua, não confinados, comunitários, assilvestrados ou selvagens. Em outras palavras, a maioria dos cães do planeta já vive por conta própria, sem suporte humano direto em um ambiente caseiro.
Embora estes 800 milhões de cães tenham muito mais independência de movimento e comportamento do que os 200 milhões de cães caseiros e tenham desenvolvido uma série de habilidades de sobrevivência, quase todos os cães do planeta ainda dependem da presença humana para um recurso chave: comida, seja na forma de alimentação direta, seja na forma de lixo e resíduos.
A perda de recursos alimentícios humanos representaria o desafio de sobrevivência mais significativo para os cães durante as consequências imediatas do sumiço do ser humano e nos anos de transição para um futuro totalmente pós-humano.
Se os humanos desaparecessem, junto com seu lixo, resíduos e estoques cheios de ração ensacada, os cães teriam que encontrar rapidamente outras fontes de alimento. Como os cães são comportamentalmente flexíveis -e porque são generalistas na dieta- eles provavelmente poderiam sobreviver com uma ampla variedade de alimentos, desde plantas, frutos e insetos até pequenos mamíferos e pássaros, e talvez até mesmo algumas presas maiores. Seus planos de alimentação dependeriam de onde vivem, seu tamanho e sua forma corporal.
Os primeiros anos após o desaparecimento humano seriam desafiadores por causa da perda abrupta de apoio humano, e provavelmente haveria mortes caninas significativas. Os cães que vivem como animais de estimação podem ter dificuldade em sobreviver porque nunca tiveram a experiência de estar por conta própria e podem não ter desenvolvido as habilidades necessárias para encontrar comida e lidar com encontros variados e inesperados com cães e outros animais.
Depois de alguns anos difíceis, os cães se adaptariam à vida por conta própria. Os cães retêm muitas das características e comportamentos de seus parentes selvagens, como lobos, coiotes e chacais; eles não se "esqueceram" de como forragear, caçar, encontrar companheiros, criar filhotes, conviver em grupos e se defender. Essas habilidades voltariam a funcionar.
A resposta à nossa primeira pergunta -se os cães sobreviveriam à perda abrupta de seres humanos- é quase certo que sim, assumindo que os cães ficariam com um planeta que não se tornou completamente inabitável por causa da crise climática provocada por nós. Uma questão mais intrigante é quem os cães podem se tornar, uma vez separados dos humanos?
A origem dos cães modernos ainda é fortemente contestada entre biólogos, paleontólogos e antropólogos. Mas os contornos gerais estão no lugar. Cães e humanos viveram em estreita associação por pelo menos 15.000 anos, e talvez até 40.000 anos ou mais. As únicas espécies de canídeos que sofreram domesticação, os cães também foram os primeiros animais a serem domesticados, e provavelmente o único animal a ter sido domesticado por caçadores-coletores, com outros animais sendo domesticados após o desenvolvimento da agricultura.
Esse processo de domesticação moldou fortemente a trajetória evolutiva dos cães até este ponto. O perfil fenotípico dos cães -sua morfologia, fisiologia, comportamento- foi deliberadamente moldado pelos humanos por meio de procriação proposital. Ao lado da seleção deliberada por humanos para características particulares, como simpatia e atração por novidades, também houve seleção indireta de outras características não intencionais.
A seleção direta para hipersocialidade, por exemplo, introduziu outras características, como mudanças na pigmentação -pêlo manchado ou manchas brancas-, orelhas caídas e caudas encaracoladas, nenhuma das quais é observada em parentes selvagens de cães. Em outras palavras, a ideia de que os humanos criaram cães é uma ilusão.
Mergulhamos no pool genético dos cães, mas as ondulações mais amplas de nossos salpicos vão muito além de nosso controle consciente ou mesmo de nossa compreensão. De fato, o etologista Per Jensen e seus colegas descrevem a domesticação canina como o maior experimento biológico e genético da história.
Em um futuro pós-humano, esse experimento dramático continuaria, mas os parâmetros mudariam. Os cães começariam a flutuar nas correntes da seleção natural, e para onde essas correntes os levariam é uma das grandes incógnitas.
Ainda assim, podemos fazer algumas suposições fundamentadas. À medida que os cães se tornem quem eles vão se tornar, não vão voltar a ser lobos. O desaparecimento dos humanos não resultaria em uma espécie de engenharia reversa, onde o processo de domesticação retrocede e os cães "involuem" de volta para onde estavam antes que os primeiros lobos tentassem alcançar os seres humanos e vice-versa.
Uma vez que todos os cães tenham ficado livres da seleção dirigida por humanos por tempo suficiente para que a seleção natural atue em todos os indivíduos do grupo, eles se tornarão secundariamente selvagens. Com "secundariamente" quero dizer "assilvestrado" já que a população já foi domesticada. Quantas gerações de reprodução livre de humanos seriam necessárias para que eles se tornassem totalmente selvagens? Nunca saberemos a resposta para essa faceta do experimento biológico.
O que podemos prever com segurança é que os cães pós-humanos se tornarão algo inteiramente, ou pelo menos em grande parte, novo. Os nichos ecológicos que os cães pós-humanos habitariam serão muito diferentes dos nichos preenchidos por seus progenitores. A diferença mais importante é que eles não terão mais recursos humanos para alimentação.
Dentro desse vácuo, muitos fatores podem influenciar as estratégias de alimentação dos cães pós-humanos, incluindo restrições anatômicas e físicas sobre o que ou quem os cães podem comer, o tipo de presa disponível em cada local, a distribuição dos recursos alimentares dentro das áreas de vida ou territórios dos cães, a variação sazonal nos recursos alimentares e competição com outros animais.
Por exemplo, cães pequenos seriam capazes de caçar e se alimentar de insetos ou frutas silvestres, enquanto essa dieta não forneceria a ingestão calórica adequada para um grande cão. Diferentes estratégias de alimentação podem evoluir com o tempo, dependendo do nicho ecológico, da disponibilidade local de alimentos e da competição com outros animais.
As dietas dos cães, por sua vez, influenciariam como eles iriam evoluír com o tempo. Eventualmente, diferentes populações de cães podem até se tornar espécies distintas, usando diferentes estratégias de alimentação para preencher uma variedade de nichos ecológicos.
As estratégias reprodutivas também precisam evoluir rapidamente. Os cães precisarão encontrar parceiros, namorar e criar seus filhotes. As estratégias de acasalamento e reprodução dos cães pós-humanos provavelmente não precisariam mudar tão drasticamente quanto sua ecologia alimentar.
No entanto, pode haver algumas mudanças interessantes, já que a seleção natural favorece estratégias que levam a um maior sucesso de reprodução na ausência de humanos. Isso pode incluir um flerte mais prolongado e ritualizado, uma reversão para um ciclo de cio por ano em vez de dois, e maior envolvimento de mães, pais, tias, tios e outros aloparentes na criação e proteção dos filhos.
Muitas formas diferentes de organização social podem surgir e funcionar em um mundo sem humanos, incluindo a formação de pares unidos, pequenos grupos e matilhas maiores. Alternativamente, alguns cães podem viver principalmente vidas solitárias, juntando-se a outros cães apenas quando necessário. Qualquer que seja o tipo de vida social que tenham, os cães precisarão aprimorar suas habilidades sociais, incluindo a comunicação de intenções e a resolução de conflitos, e precisarão aprender uns com os outros.
As habilidades desenvolvidas durante o período inicial de socialização dos filhotes e a adolescência serão particularmente importantes. A vida interior dos cães pós-humanos também mudará à medida que eles desenvolvam as habilidades cognitivas e inteligência emocional necessárias para interagir com outros animais e torná-los membros bem-sucedidos de comunidades selvagens.
Qual seria a aparência de um cão pós-humano? É difícil dizer, porque as características morfológicas irão evoluir em resposta a pressões ecológicas, fatores alimentares e características distintas do nicho ecológico que uma determinada população de cães pode preencher.
De fato, os cães já são as espécies de mamíferos com maior diversidade morfológica do planeta. Pense na enorme diferença de tamanho entre, por exemplo, um chihuahua e um dogue alemão. Uma possibilidade é que os cães acabarão se tornando uma média dos que temos hoje com, digamos, uns 15 kg.
Uma possibilidade igualmente viável é que os cães do futuro irão se separar com o tempo em tipos menores e maiores. A forma e o tamanho das características físicas, como orelhas, rabos e narizes, irão evoluir de forma semelhante em resposta às demandas únicas de nicho ecológico, alimentos, estratégias de acasalamento e estrutura social.
Para citar apenas um exemplo, a forma e o tamanho das orelhas representarão um conjunto de compensações que refletem as demandas concorrentes de clima, geografia e ecologia, entre outras coisas. Ouvidos maiores podem captar sons melhores do que ouvidos menores e ajudariam os cães a localizar presas, mas também podem ser problemáticos em temperaturas muito frias porque há mais área de superfície para perda de calor. Em climas frios, orelhas menores e audição um pouco menos aguda podem valer a pena a troca pela proteção contra o frio.
A seleção natural eliminará rapidamente as características físicas inadequadas, como focinhos extremamente encurtados, dobras cutâneas excessivas e membros extremamente longos ou curtos. As orelhas caídas e as caudas encaracoladas provavelmente também desapareceriam porque inibem a comunicação entre cães e não têm nenhum propósito funcional; o mesmo aconteceria com as pelagens manchadas e bi- e tricolores.
Os cães foram criados seletivamente por humanos para certas características comportamentais, incluindo uma propensão geral para a simpatia e maleabilidade e habilidades funcionais específicas da raça, como apontar, buscar, pastorear e guardar. A seleção para essas características foi impulsionada por um interesse nas características físicas dos cães, pela utilidade dessas características em relação às atividades humanas e, nos últimos um ou dois séculos, pelos caprichos e fantasias estéticas humanas. Fora do contexto das relações humanos-caninos, algumas dessas características físicas e comportamentais podem servir bem aos cães. Outras nem tanto.
É difícil saber como alguns dos traços comportamentais que resultaram da domesticação, como hipersociabilidade e atenção aos sinais gestuais humanos, podem ser reaproveitados por cães pós-humanos, e se esses traços serão úteis ou não adaptativos. Quem sabe, por exemplo, se os músculos faciais que permitem aos cães fazerem "olhos de cachorrinho" para solicitar comida ou atenção das pessoas -musculatura ausente em lobos e outros canídeos- terão alguma utilidade em um mundo pós-humano.
Imaginar um futuro para cães sem suas contrapartes humanas é um exercício interessante de biologia, mas o valor real do experimento de pensamento é que pode nos ajudar a pensar mais claramente sobre quem são os cães no presente e isso, por sua vez, pode esclarecer os contornos morais das relações entre humanos e caninos.
O efeito mais importante de se pensar sobre cães pós-humanos, e como eles podem florescer na nossa ausência. Tendemos a pensar nos cães pelas lentes do que eles significam para nós -são bons companheiros, benéficos para a nossa saúde, um bálsamo para a nossa solidão, úteis para o trabalho, esporte e entretenimento-. Mas muitas vezes as vidas que pedimos que vivam em nossa presença são um pálido reflexo do que podem ser.
Então, como podemos ajudar os cães a viver vidas ricas e interessantes com experiências agora, em nosso meio? Aqueles que vivem com cães caseiros devem considerar permitir que seus cães se envolvam em uma ampla gama de comportamentos típicos da espécie. Os humanos podem ser mais cuidadosos em sua abordagem de viver com cães se usarmos a melhor ciência canina para entender quem eles são.
Sabendo disso, podemos fazer o nosso melhor para fornecer oportunidades para o nosso cão usar suas incríveis capacidades olfativas, por exemplo, permitindo que ele se demore sobre os cheiros quando sai para uma caminhada ou que tenha bastante tempo livre para seguir sua própria agenda olfativa.
Considere também como os cães usam o espaço. Os biólogos usam o conceito de "área de vida", que foi definido em um artigo de 1943 por William Henry Burt como "aquela área percorrida pelo animal em suas atividades normais de coleta de alimentos, acasalamento e cuidado com os filhotes". Pesquisas sobre a área de vida de cães selvagens mostram ampla variação, com alguns cães tendo uma área de apenas 2 mil metros quadrados, enquanto outros têm área de vida de até 70 quilômetros quadrados.
Em contraste com os cães selvagens, os cães caseiros estão altamente restritos nas formas como podem usar o espaço: eles geralmente não têm nada que se aproxime de uma área residencial, raramente têm permissão para vagar e são considerados muito sortudos se tiveram um bom quintal para brincar. Ai está um bom motivo para você levar seu peludo para dar um passeio todos os dias.
Não é tão agradável pensar em um mundo em que não estejamos mais aqui, mas há muitos motivos para acreditar que, quando partirmos, os cães sobreviverão e a vida continuará. E é saudável para nós começarmos o descentramento do humano agora. Quando nos descentramos, o pensamento não-antropocêntrico real e frutífero pode começar. Ao imaginar quem os cães podem se tornar sem nós, podemos obter uma nova compreensão sobre quem eles são agora e como nosso relacionamento com eles pode nos beneficiar melhor.
Podemos perguntar aos nossos cães, brincando: - "O que você faria sem mim, bom garoto?" A verdade é que eles, abanando o rabo e latindo o tempo todo, podem nos deixar só imaginando as possibilidades.
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Comentários
Neste post, pela primeira vez em 50+ anos, descobri o que quer dizer "deu trela". Pitoresco esse vocabulário.