Mildred Lisette Norman, uma pacifista e ativista pela paz caminhou em solidão durante mais de 28 anos para divulgar uma única e utópica mensagem estampada em um agasalho azul: "Paz". Esta avó de Forrest Gump, adorável e genial, eloquente no discurso e na dialética, percorreu mais de 40.000 km a pé semeando sua quimérica e fabulosa crença por recônditos caminhos da América do Norte. Ela foi a primeira mulher a percorrer toda a extensão da Trilha dos Apalaches em uma temporada. E atravessou os Estados Unidos, não uma, nem duas vezes, senão que sete falando com os outros sobre a paz. |
Mildred (1908–1981), também conhecida como "Peace Pilgrim" (Peregrina da Paz), dedicou meia vida com os pés calcando a areia e o asfalto americano com suas roupas como únicas posses e com sua mensagem como única moeda de troca para hospedagem e alimento. Nômade sem rumo, passeou primeiro por aldeias, escolas, igrejas, e mais tarde por universidades e as mais importantes redes de rádio e televisão do país para deixar a marca de seus calçados e a impressão de um sermão de sucesso para a convulsa sociedade americana então submersa nos conflitos do Vietnã e Coréia. Foi uma heroína teórica do movimento hippie dos agitados anos 60.
O Nascimento de uma ideia.
Mildred Lisette Norman Ryder nasceu em 18 de julho de 1908 em uma pequena granja em Harbor City, Nova Jersey. Era a mais velha de três irmãos em uma família muito humilde, mas ao mesmo tempo respeitada por sua comunidade ao ter fundado um assentamento agrícola de imigrantes alemães em 1855. Seus antepassados fugiram da Alemanha e de suas guerras no século XIX.
Logo sua família se transformou em uma comunidade ao acolher outros familiares e amigos no regaço de sua escassa riqueza. Os pais de Mildred, ele carpinteiro e ela dona-de-casa, esbanjavam ética e moral ante a escassez de bens materiais. A família considerava-se "livre pensadora", buscando respostas através da razão, da ética e da lógica, sem religiões, sem doutrinas ecumênicas nem catecismos, sem professar cultos ou pertencer a igrejas.
Mildred quando tinha 16 anos.
Mildred destacou-se entre seus irmãos por sua memória e capacidade cognitiva. Aos 3 anos sabia recitar poemas e tocar piano, destacando-se posteriormente como aluna diferenciada e com grande capacidade de oratória na escola fundamental. Mas sobretudo mostrou logo grandes talento nos esportes e de sacrifício físico surpreendendo a todos em uma área, até então, não acostumada a grandes êxitos femininos.
Em 1933 casou-se com Stanley Ryder um endinheirado homem de negócios desaprovado, ao mesmo tempo que respeitado, pela família de Mildred; cuja relação foi se deteriorando ao mesmo tempo que ela madurava seu grande projeto. Quando Stanley foi recrutado na Segunda Guerra Mundial em 1942, Mildred protestou energicamente e tentou convencer o marido a se converter em objetor de consciência. Sua negativa conduziu, numa fria noite de 1942, à dissolução definitiva do casal.
Mildred quando tinha 21 anos.
Naquela mesma noite de solidão, passeando por um bosque próximo a sua casa e buscando respostas e vocações de uma vida perdida cuidando de seu mal agradecido marido, Mildred teve sua iluminação pessoal do que tinha que fazer com sua vida.
"Caminhando na madrugada sentia-me elevada, mais elevada do que nunca. Cada flor, cada arbusto, cada árvore, parecia levar uma auréola. Nesse momento de solidão senti-me em plena disposição, sem reservas, a dar minha vida, a dedicar minha vida ao serviço. Então, uma grande paz veio sobre mim. Uma sensação de paz que tentei provocar o resto de minha vida. Experimentei uma plena capacitação de dar todos meus esforços, para além dos triviais cuidados de meu carro."
Durante os primeiros anos quarenta enfocou sua vocação no trabalho em várias ONGs e organizações de voluntariado. "Friends Service Committee", a Comissão de Bolsas da Filadélfia, o Conselho das Nações Unidas da Filadélfia e, sobretudo, filiou-se ao Conselho Internacional de Mulheres para a Paz e a Liberdade.
Os primeiros passos.
O problema é que Mildred não conseguiu recuperar o sentimento de paz daquela noite fria. Egoísta de sensações buscou a complacência de seu ego para satisfazer a lembrança de um sentimento esquecido. Mas no outono de 1952, recuperou essa completa paz interior ao final de sua primeira longa e extraordinária viagem a pé. Em 26 de abril de 1952, Mildred começou a caminhada de 3.500 km denominada "A trilha dos Apalaches", que atravessa 14 estados, e se converteu na primeira mulher que completou a trilha solitária, caminhando durante quase cinco meses.
Mildred quando tinha 21 anos.
Durante a excursão, viveu completamente ao ar livre, equipada com apenas um par de calças, uma camisa e suéter, uma manta e dois sacos plásticos. Seu menu, pela manhã e noite, era de duas canecas de farinha de aveia crua, empapada em água e adoçada; ao meio dia, duas canecas de leite em pó, mais as bagas e os frutos verdes ou secos que encontrava pelo bosque.
Mildred convenceu-se de que as posses materiais eram simplesmente uma carga e que para conseguir um estado diário de graça, haveria que manter a simplicidade. A ideia de converter-se em peregrina, caminhando entre países pela paz, chegou neste momento em outra visão. Ela escreveu:
"Enquanto caminhava pelos bosques da Nova Inglaterra, vi passar por minha mente um mapa dos Estados Unidos com as grandes cidades marcadas, e foi como se alguém tivesse pegado um lápis de cor e assinalava meu caminho com um zig-zag, de costa a costa e de fronteira a fronteira, desde Los Angeles à cidade de Nova York [...] Vou falar com todas as pessoas que encontrar pelo caminho sobre a paz. Vou levar um sinal, uma túnica com uma estampa atrás dizendo 'Passeios de Costa a Costa pela paz' e na parte da frente 'Peregrina da paz'"
"Peace Pilgrim"
A partir desse momento (1958), Mildred de 44 anos, passou a ser para sempre "Peace Pilgrim", três décadas de caminhadas solitárias ao longo e ao largo da América no Norte sempre com a mesma roupa. Em sua primeira viagem como "Peace Pilgrim", caminhou 8.000 quilômetros desde a Califórnia até Nova York, de costa a costa e de fronteira a fronteira, para compartilhar sua mensagem de paz no meio da guerra da Coréia, a Guerra Fria, e no apogeu da era McCarthy. O problema é que não era ainda popular e as desconfianças marcaram seus víveres.
Em seus bolsos uma escova de dentes, um pente, um lápis e, mais tarde, vários papéis com frases sobre a paz de personagens famosos. Muitos dias de jejum, desfalecimentos e lesões... Não aceitava nunca dinheiro, nem esmolas. Nunca se aproximou de ninguém com algum interesse, mas deixou que outros seguissem seu caminho. Às vezes as etapas eram feitas com companhias, mas quase sempre em solidão.
Mildred Lisette Norman, 28 anos de fotos e peregrinação. Quase sempre com as mesmas roupas.
Tinha um magnetismo que cativava qualquer um no mesmo instante. Ela foi uma fascinante e contundente oradora, com uma mensagem que incluía um alfarrábio de histórias poderosas e inspiradoras que eram fáceis de escutar e recordar.
Durante quase três décadas, desde 1953 a 1981, cruzou o país em sete ocasiões, incluindo duas viagens ao Havaí e Alasca, bem como ao Canadá e México. Em 1971 durante sua sétima travessia deixou de contar os quilômetros quando já ultrapassava os 40.000.
Tanta era sua capacidade de sacrifício que utilizou apenas 28 pares de sapatos durante os 28 anos. 2.500 quilômetros por par. Ela preferia presentear crianças que cruzavam em seu caminho com as múltiplas doações de equipamentos e vestimentas que recebia.
Foi presa duas vezes por vadiagem e falta de documentos, mas acabou organizando um coral no presídio com presos, violões e inclusive carcereiros até que a libertaram em troca de trabalhos e compromissos sociais voluntários, que era o que ela sabia fazer tão bem. Foi também assaltada, molestada e maltratada por um monte de bêbados e meliantes com os quais intimava até acalmar suas ferocidades e condutas agressivas. Praticou também a tolerância para o mundo gay, bissexual, e transexual, defendendo a não discriminação por condição sexual, em um momento difícil para essas atitudes.
Em 7 de julho de 1981, enquanto praticava um discurso próximo a Knox, Indiana, "Peace Pilgrim" foi atropelada em um desgraçado acidente automobilístico. No momento de sua morte estava cruzando os Estados Unidos pela sétima vez, ela tinha 73 anos.
Seu legado e lenda imediatamente cresceram como espuma. Através de sua fundação, múltiplos seguidores dizem que continuam a encontrar significado em sua mensagem e que são inspirados por seu exemplo, trazendo a herança de seu projeto até nossos dias.
"Estou quase segura de que alguns dos que me ouviram, simplesmente devem pensar que estou completamente louca. De qualquer forma estou fazendo algo diferente. E os pioneiros sempre são vistos como um pouco estranhos. Mas tudo o que quero é que as pessoas vejam a bondade dentro delas mesmas, porque é mais susceptível atingir aquilo que se vê. O mundo é como um espelho: se você sorrir para ele, vai sorrir de volta. Gosto de sorrir e, pelo geral, recebo muito sorrisos em troca. Sou feliz e tenho tudo o que preciso na minha peregrinação sem sequer pedir. Vou continuar a ser uma andarilha enquanto continuarem a me dar um abrigo e comida, vou continuar andando até que a humanidade enfim aprenda o caminho da paz."Peace Pilgrim, 6 de julho de 1981 (um dia antes de sua morte).
Fonte: My Hero.
O MDig precisa de sua ajuda.
Por favor, apóie o MDig com o valor que você puder e isso leva apenas um minuto. Obrigado!
Meios de fazer a sua contribuição:
- Faça um doação pelo Paypal clicando no seguinte link: Apoiar o MDig.
- Seja nosso patrão no Patreon clicando no seguinte link: Patreon do MDig.
- Pix MDig ID: c048e5ac-0172-45ed-b26a-910f9f4b1d0a
- Depósito direto em conta corrente do Banco do Brasil: Agência: 3543-2 / Conta corrente: 17364-9
- Depósito direto em conta corrente da Caixa Econômica: Agência: 1637 / Conta corrente: 000835148057-4 / Operação: 1288
Faça o seu comentário
Comentários