Em 1914, há cem anos, a venda e o uso de cocaína -substitúida na Coca-Cola pela cafeina- foi proibida pela primeira vez e o consumo quase desapareceu, retornando a partir da década de 60. Em todo este século de guerra contra as drogas, no entanto, nossos professores e governos nos contaram uma história sobre o vício. Esta história está tão arraigada em nossa mente que já a damos como fato. Parece algo óbvio. Parece manifestamente verdadeiro. Mas será que é assim realmente? |
Há três anos e meio comecei uma viagem de 48.000 quilômetros com meu novo livro, "Chasing The Scream: The First And Last Days of the War on Drugs", para descobrir o que realmente impulsionava a guerra contra as drogas, ou isso cria. Não obstante, o que aprendi no caminho é que quase tudo o que nos contaram sobre o vício é falso; há uma história diferente a ponto de ser contada, se é que estamos dispostos a escutá-la.
Se absorvermos esta nova história, teremos que mudar bem mais do que a guerra contra as drogas. Teremos que nos alterar para nós mesmos.
Eu o aprendi com uma mistura extraordinária de gente que conheci em minhas viagens. Dos amigos sobreviventes de Billie Holiday, que me ajudaram a entender que o fundador da guerra contra as drogas a espreitou e contribuiu a matá-la. De um médico judeu, que foi tirado de um gueto de Budapeste quando era ainda um bebê para depois revelar os segredos do vício sendo adulto. De uma mula de crack transexual do Brooklyn que foi concebido quando sua mãe, viciada no crack, foi violada por seu pai, um agente de polícia de Nova York. De um homem que um ditador torturador reteve num poço durante dois anos e depois foi eleito presidente do Uruguai para dar começo ao final da guerra contra as drogas.
Tinha um motivo bastante pessoal para querer saber essas respostas. Uma de minhas primeiras lembranças de criança é tentar acordar um parente e não ser capaz. Desde então, dei voltas ao mistério essencial do vício: o que provoca com que algumas pessoas fiquem fixas numa droga ou num comportamento sem poder parar? Como ajudamos a essas pessoas a que voltem? À medida que crescia, outro de meus familiares próximos desenvolveu um vício à cocaína e eu tive uma relação com um viciado à heroína. De forma que estou bem familiarizado com o vício.
Se no princípio tivessem me perguntado o que provoca o vício às drogas, teria olhado como se fosse um idiota, e não saberia explicar. Mas hoje todos podemos explicar: imagine que você, eu e outras 20 pessoas que passam pela rua tomássemos uma potente droga durante 20 dias. Essas drogas têm substâncias químicas muito viciantes, de modo que se a deixássemos no dia 21, nosso corpo precisaria dessas substâncias. Seríamos viciados. Isso é o que significa o vício.
Uma das formas em que esta teoria foi estabelecida pela primeira vez foi mediante experimentos com ratos, que injetaram na mente dos americanos na década dos anos 80 com uma famosa publicidade da "Partnership for a Drug-Free America". O experimento era simples: colocavam um rato numa gaiola com dos bebedouros de água. Um só com água e o outro com heroína ou cocaína diluída. Quase todas as vezes que alguém faz este experimento, o rato vai ficar obcecado com a água com droga e se embebedará até que morra.
O anúncio explicava: "A droga pode ser tão viciante que nove em cada dez ratos de laboratório vão consumi-la. Cada vez mais. Até a morte. Chama-se cocaína. E pode fazer o mesmo para você".
Não obstante, nos anos setenta, um professor de Psicologia de Vancouver chamado Bruce Alexander descobriu algo estranho neste experimento. O rato está sozinho na gaiola. Não tem outra coisa que fazer a não ser tomar drogas. O que ocorreria, se perguntava, se ele tentasse de outra maneira? Então, o professor construiu um parque para ratos (Rat Park). Tratava-se de uma jaula de diversão na qual os ratos tinham bolinhas coloridas e a melhor comida para ratos e túneis para brincar e muitos amigos: tudo o que qualquer rato quereria. Alexander queria saber o que ocorreria.
No parque de ratos, todos provaram os dois potes de água porque não sabiam o que continham. Mas o que aconteceu depois foi surpreendente.
Os ratos que tinham uma boa vida não gostaram da água com droga. Em geral, evitavam bebê-la e consumiam menos de um quarto das drogas que tomavam os ratos isolados. Nenhum morreu. Enquanto os ratos que estavam sozinhos e infelizes se tornaram dependentes, não ocorreu o mesmo a nenhuma dos que viviam num meio feliz.
Ao princípio pensei que era só uma particularidade dos ratos, até que descobri que ao mesmo tempo estavam realizando um experimento equivalente em humanos. Chamava-se "Guerra do Vietnã". A revista Time informou que o consumo de heroína era "tão comum como mascar chiclete" entre os soldados estadunidenses, e há evidências claras que o respaldam: 20% dos soldados americanos desenvolveram vício à heroína ali, segundo um estudo publicado nos Arquivos de Psiquiatria Geral. Muitas pessoas estavam compreensivelmente aterrorizadas; achavam que um grande número de viciados voltaria para casa quando terminasse a guerra.
Não obstante, 95% dos soldados adictos -de acordo com o mesmo estudo- deixou as drogas. Muito poucos se submeteram a reabilitação. Passaram de uma terrível jaula a um lugar agradável, motivo pelo qual já não queriam usar drogas.
O professor Alexander defende que esta descoberta é um profundo desafio tanto para a visão de direitas de que o vício é um falha moral devido aos excessos hedonistas, como para a visão liberal de que a dependência é uma doença que acontece num cérebro quimicamente sequestrado. De fato, defende que o vício é uma adaptação. Não é você. É sua jaula.
Após a primeira fase do Rat Park, o professor Alexander continuou com seus testes. Repetiu os primeiros experimentos, nos quais os ratos estavam sozinhos e consumiam a droga de forma compulsiva. Deixou que a consumissem durante 57 dias. Depois tirou os animais do isolamento e situou-os no parque para ratos. Queria saber se ao cair nesse estado de vício, o cérebro ficava tão sequestrado que seria impossível recuperá-lo. Será que as drogas se apoderam de você? De novo, o que ocorreu foi surpreendente. No começo parecia que os ratos tinham sintomas de abstinência, mas logo deixaram de consumir tantas drogas e voltaram a levar uma vida normal. A jaula boa salvou-os.
Quando me inteirei, fiquei intrigado. Como podia ser? Esta nova teoria é um ataque tão radical sobre o que sempre nos disseram que parece impossível, irreal. Mas quantos mais cientistas entrevistava e mais estudos lia, mais coisas descobria que pareciam não fazer sentido, a não ser que levasse em conta este novo enfoque.
Este é um exemplo de um experimento que ocorre ao seu redor e que talvez também ocorra a você algum dia. Se você sair hoje para correr e, por exemplo, desloque a cintura, provavelmente o médico receite diamorfina, o nome médico da heroína. No hospital há muita gente que recebe heroína como calmante por um longo período. A heroína dada pelo médico tem uma pureza e potência muito maior que a da heroína que consomem na rua, que os delinquentes vendem e adulteram. Portanto, se a antiga teoria do vício for verdadeira -as drogas provocam-no; fazem que seu corpo as necessite-, então é óbvio o que deveria ocorrer. Um montão de gente, ao sair do hospital, iria pelas ruas pedindo heroína para seguir com seu hábito.
Mas aí está o estranho: que nunca ocorre. O médico canadense Gabor Mate foi o primeiro em explicar-me que os consumidores clínicos o deixam sem mais problemas, apesar de que tenham sido drogados durante meses. A mesma droga, utilizada durante o mesmo período de tempo, converte os usuários da rua em adictos desesperados, enquanto não afeta os pacientes médicos.
Se você segue acreditando que o vício é provocado por substâncias químicas, isto pode resultar incompreensível. Mas se acreditar na teoria de Bruce Alexander, o puzzle começa a cobrar sentido. Os viciados de rua são como os ratos da primeira gaiola, isolados, sozinhos, com apenas uma via de escape a sua disposição. O paciente médico é como os ratos da segunda jaula. Voltam a casa a uma vida rodeada pelas pessoas que amam. A droga é a mesma, mas o meio é diferente.
Isto nos dá uma visão que vai bem mais além da necessidade de entender os dependentes. O professor Peter Cohen defende que os seres humanos têm uma necessidade profunda de apego e de criar vínculos. É bem como obtemos satisfação. Se não podemos nos conectar com as pessoas, nos relacionaremos com qualquer coisa que encontremos, o zumbido de uma roleta de cassino ou a picada de uma seringa. Ele afirma que deveríamos deixar de falar sobre "vício" em geral para começar a chamar de "apego". Um adicto à heroína aderiu-se a ela porque não conseguiu se vincular com outra coisa até esse ponto.
Portanto, o oposto ao vício não é a sobriedade. É a conexão humana.
Quando me inteirei de tudo isto, descobri que pouco a pouco estava me convencendo, mas algumas dúvidas seguiam me assaltando. Diziam esses cientistas que as substâncias viciantes não tinham nada a ver? Então me explicaram que você pode se viciar no jogo sem que necessariamente pense que injeta um maço de cartas nas veias. É possível ter todo o tipo de vícios sem que impliquem nenhum componente químico. Num dia fui a uma reunião de "Jogadores Anônimos" em Las Vegas -com a permissão de todos os presentes, que sabiam que estava ali para observar- e vi que eram tão dependentes quanto os cocainômanos e heroinómanos que conhecia. E ainda assim, não havia substâncias químicas aditivas no meio.
Contudo, seguia me perguntando se os componentes químicos desempenhavam algum papel. Resulta que havia um experimento que dava a resposta precisa, e que aprendi graças ao livro "The Cult of Pharmacology", de Richard DeGrandpre.
Todo mundo sabe que o fumo é um dos hábitos mais viciantes que existem. As substâncias químicas do fumo procedem de uma droga chamada nicotina. Quando criaram os adesivos de nicotina no início dos anos noventa, cresceu o otimismo: os fumantes poderiam saciar seu vício sem sofrer os efeitos perniciosos (e mortais) do tabagismo. Seriam libertos.
Não obstante, o Departamento de Saúde revelou que apenas 17,7% dos fumantes eram capazes de deixar de fumar usando os adesivos de nicotina. Isto tem lá sua importância. Se as substâncias químicas podiam tirar 17,7% do seu vício, como isto demonstra, ainda assim eram milhões de vidas arruinadas a nível mundial. Isto significa que a história que nos contaram de que a "Causa do Vício" são as substâncias viciantes é verdadeira, mas é apenas uma pequena parte de um panorama muito maior.
Tudo isto tem grandes envolvimentos na guerra contra as drogas que travamos durante todo um século. Esta guerra em massa que mata pessoas desde o México a Liverpool, está baseada na afirmação de que precisamos erradicar fisicamente um montão de substâncias químicas que interceptam o cérebro das pessoas e provocam vício. Mas se as drogas não são a causa do vício -se, em realidade, é o desapego o que a provoca-, volta a resultar incompreensível.
Por irônico que pareça, a guerra contra as drogas realmente incrementa todas essas causas do vício. Por exemplo, fui a um presídio em Tent City, no Arizona, onde os presos ficam isolados em diminutas grutas de pedra, conhecidas como The Hole (O Buraco), durante semanas como castigo pelo uso de drogas. É a recreação humana mais próxima às jaulas que garantiam o vício mortal dos ratos. Quando esses prisioneiros saiam, não terão possibilidades de trabalho por seus antecedentes penais; estarão inclusive mais isolados. É o que comprovei através de todas as histórias humanas que descobri ao longo e largo do mundo.
Há uma alternativa. É possível construir um sistema desenhado para ajudar os viciados a se reconciliarem com o mundo e deixar para trás seus vícios.
Não é algo teórico. Está ocorrendo. Eu vi. Há quase 15 anos, Portugal tinha um dos piores problemas de drogas na Europa: 1% da população era viciada em heroína. Tentaram uma guerra contra as drogas e o problema não fez mais do que piorar. Então decidiram fazer algo radicalmente diferente. Pensaram em despenalizar todas as drogas e utilizar todo o dinheiro que antes gastavam prendendo e encarcerando viciados em reinseri-los e reconciliá-los com seus próprios sentimentos e com a sociedade. O passo mais importante foi conseguir lhes um alojamento seguro e um trabalho para que tenham um objetivo na vida e algo pelo qual se levantar a cada amanhã. Eu vi como lhes ensinavam em clínicas cálidas e acolhedoras a se reconectarem com seus sentimentos depois de anos de trauma e de silêncio com as drogas.
Inteirei-me de que um grupo de dependentes recebeu um empréstimo para criar uma empresa de mudanças. Eram um grupo, todos ligados entre si e com a sociedade, responsáveis pelo cuidado de cada um.
Os resultados de tudo isto agora estão aqui. Um estudo independente do British Journal of Criminology descobriu que desde a total despenalização, diminuiu o vício, e o uso de drogas injetadas baixou pela metade. Repito: o uso de drogas injetadas reduziu-se em 50%. A despenalização foi um sucesso tão evidente que poucas pessoas em Portugal querem voltar ao antigo sistema. Quem mais fez campanha contra a despenalização em 2000 foi João Figueira, inspetor chefe do corpo de narcóticos de Portugal. Fez todas as advertências nefastas que esperariam do Daily Mail ou de Fox News. Mas quando estivemos juntos em Lisboa, me disse que não ocorreu nada do que tinha predito... e que agora espera que todo mundo siga o exemplo de Portugal.
Isto não só afeta às pessoas viciadas do meu meio. É relevante para todos nós, porque nos obriga a pensar de forma diferente sobre nós mesmos. Os seres humanos somos animais de vínculos. Precisamos de apego e amor. A frase mais sábia de todo o século XX foi "Não viva mais em fragmentos. Somente conecte-se!", de E. M. Forster. Mas criamos um meio e uma cultura que nos impede a conexão, ou que oferece só a paródia disso através da internet. O aumento do vício é um sintoma de uma doença mais profunda da forma de vida que levamos, que dirige constantemente nossa olhar para o próximo objeto brilhante que deveríamos comprar em vez de para os seres humanos que nos rodeiam.
O escritor George Monbiot chamou isso de "era da solidão". Criamos sociedades humanas nas quais é mais fácil do que nunca que as pessoas careçam de relações humanas. Bruce Alexander, o criador de Rat Park, disse-me que durante muito tempo estamos falando exclusivamente da recuperação do vício de forma individual. Agora temos que falar da recuperação social, o modo em que todos nos recuperamos, unidos, da doença do isolamento que nos invade como um espesso nevoeiro.
Mas esta nova prova não só supõe um desafio politicamente falando. Não só nos obriga a mudar a mente. Obriga-nos a mudar nosso coração.
Gostar de um viciado é realmente difícil. Quando olhava os adictos que gosto, sempre estava tentado a seguir os conselhos para um amor difícil promovidos pelos realities como "Intervention" -diga ao viciado que crie vergonha na cara ou vai esquecer dele-. Sua mensagem é que deveríamos evitar os viciados que não vão deixar as drogas. É a lógica da guerra contra as drogas, importada a nossas vidas privadas. Não obstante, aprendi que assim só aumentamos ainda mais seu vício e acabamos perdendo os de vez. Cheguei em casa decidido a relacionar-me mais que nunca aos viciados que conhecia, para lhes fazer saber que os amo de forma incondicional, independentemente de se vai deixar ou não as drogas.
Quando voltei de minha longa viagem, olhei meu ex-namorado, com síndrome de abstinência, tremendo na cama, e pensei nele de outra forma. No último século, passamos cantando canções de guerra sobre viciados. Enquanto secava sua testa, ocorreu me que deveríamos ter cantado canções de amor.
A história completa da viagem de Johann Hari -contada através das histórias das pessoas que ele conheceu- pode ser lida em seu livro "Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs". O livro recebeu elogios em todo mundo, desde Elton John até Glenn Greenwald, passando por Naomi Klein. É possível também ler mais sobre o livro em www.chasingthescream.com.
As referências e as fontes bibliográficas de toda a informação citada neste artigo podem ser encontradas nas extensas notas do referido livro. Da mesma forma, se você se interessar por mais notícias sobre o livro e este ótimo tema, poderia visitar a página do Facebook do Chasingthescream e dar uma "curtida".
Fonte: Huff Post.
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Comentários
todos nós somos viciados embora alguns vícios sejam não revelante para a sociedade Francisco(***
Bah.... Fantástico !!!
Se tivesse uma maneira de compartilhar isso em massa, para que chegasse ao maior números de pessoas...
Tipo... Uma campanha pesada, intensa, que fizesse as pessoas - pelo menos - refletir sobre isso tudo...
Pensando... Pensando...
:-/
Uma vez assistindo o programa 'Café Filosófico' da TV Cultura, uma pessoa que tenho dúvida se foi a filosofa Márcia Tiburi fez uma afirmação igual a este "Rat Park". Nas minhas humildes palavras, ela disse mais ou menos que quem teve uma excelente infância e uma boa adolescência, tipo ter brincado, ter gozado a vida como no meu exemplo: brinquei de carrinho de rolemã, skate, esconde-esconde, taco, futebol, bolinha de gude, pião, pipa, balão, bicicleta, ou seja, conheci vários prazeres na vida. Quando me apresentaram o prazer das drogas, pelo menos para mim não teve graça. Procuro este programa há muitos anos para compartilha-lo com todos, mas infelizmente nunca encontrei.
Tem um outro parecido também do mesmo programa em que numa parte a psicanalista Maria Rita Kehl cita a mesma coisa: https://vimeo.com/70953566
Caraca! De tão bom li numa pancada só! Mas será que a sociedade aceita quebrar este paradigma? :sha: