Se você tiver 40 anos ou mais deve-se lembrar muito bem de que os curiosos tinham que se alimentar de livros e revistas para saciar suas necessidades. Uma das revistas mais famosas do mundo, apesar do formato livro de bolso, era a Reader's Digest, um folhetim de variedades cuja edição mensal era esperada com ansiedade por todo bom leitor. A revistinha era uma classe de blog em formato de papel que continha histórias reais geralmente narradas com uma profusão de detalhes por seu próprios leitores. |
A desse post apareceu originalmente na edição de dezembro de 1983, contada por Elisabeth Kubler Ross, e convidava os leitores a pararem de usar uma determinada expressão da "boca para fora".
Explicando o contexto: há uma expressão de cordialidade muito utilizada em inglês, "Let Me Know If You Need Anything" ("Deixe-me saber se você precisa de alguma coisa") para denotar educação sem que haja necessariamente a vontade de fazê-lo. Algo como o cumprimento "Como você vai?", que na verdade é uma pergunta retórica cordial, mas que na realidade não traduz minimamente a preocupação de como está a sua vida.
"Ainda em choque, eu tropecei uma e outra vez tentando decidir o que colocar nas malas. Mais cedo, naquela noite, recebi um telefonema da minha cidade natal no Missouri, dizendo que meu irmão, sua esposa, sua irmã e os dois filhos dela morreram em um acidente de carro.
- 'Venha assim que puder', suplicou minha mãe.
Isso era o que eu queria fazer, sair imediatamente, apressar-me, mas meu marido, Larry, e eu estávamos embalando todos os nossos pertences para mudar de Ohio para o Novo México. Nossa casa estava uma bagunça. As roupas que Larry, eu e nossos dois filhos, Eric e Meghan, precisávamos já estavam guardadas em caixas que eu nem sabia onde estavam.
Atordoada pela dor, eu não conseguia me lembrar. Havia outras roupas sujas empilhadas na lavanderia. O resto da janta e a louça ainda repousava sobre a mesa da cozinha. Havia brinquedos espalhados por todos os cantos.
Enquanto Larry tentava fazer reservas para o voo da manhã seguinte, eu vagueava pela casa sem rumo pegando as coisas e colocando em qualquer lugar. Eu não conseguia me concentrar. Uma e outra vez, as palavras que eu ouvi no telefone ecoavam pela minha cabeça:
- "Bill morreu, a doce Marilyn também... June e as duas crianças... '
Era como se a ligação de minha mãe estivesse bloqueando meu cérebro com algodão. Sempre que Larry falava, soava muito longe. Enquanto andava sem rumo pela minha própria casa, batia em portas e tropeçava nas cadeiras com palavrões.
Larry conseguiu um voo às sete horas da manhã seguinte. Então telefonou para alguns amigos para lhes dizer o que tinha acontecido. Quase todos pediram para falar comigo e gentilmente disseram:
- 'Se houver alguma coisa que eu possa fazer, me avise'.
- 'Muito obrigada', eu respondia. Mas não sabia o que pedir. Eu não conseguia me concentrar em absolutamente nada.
Sentei-me em uma cadeira, olhando para o nada de uma janela que dava para o quintal, enquanto Larry falava ao telefone com Donna King, a mulher que me ajudava a cuidar da creche da igreja a cada domingo. Donna e eu éramos amigas casuais, mas não nos víamos muitas vezes. Ela e Emerson, seu marido magrelo e silencioso, se mantinham ocupados durante a semana com sua própria "creche" de filhos com idade entre dois e quinze anos.
Enquanto estava lá totalmente absorta em nenhum pensamento, Meghan passou segurando uma bola. Eric corria atrás. Deveriam estar na cama, pensei. Eu os segui até a sala de estar. Minhas pernas arrastavam. Minhas mãos estavam enluvadas com chumbo. Eu acabei afundada no sofá em total estupor.
Quando de repente a campainha tocou, me levantei lentamente e percorri a sala. Abri a porta e lá estava Emerson King de pé na varanda.
- 'Eu vim limpar seus sapatos', disse o homem. Confusa, pedi-lhe para repetir.
- 'Donna teve que ficar com o bebê', ele disse, - 'Mas queremos ajudá-los. Lembro-me de quando meu pai morreu, levou horas para que os sapatos das crianças fossem limpos e engraxados para o enterro. Então é isso que eu vim fazer por vocês. Dê-me seus sapatos, não apenas seus bons sapatos, mas todos seus sapatos.'
Mas que merda era aquela? Quem se preocuparia com sapatos quando perdeu entes queridos? Dai eu lembrei que Eric correu na lama depois da missa no domingo passado. Para não ser superada por seu irmão, Meghan chutou pedras e arranhou todo os seus sapatos na calçada e quando chegamos em casa eu simplesmente joguei-os na lavanderia para limpar mais tarde."
"Enquanto Emerson espalhava jornais no chão da cozinha, achei as os sapatos de Larry, minhas sandálias e os calçados sujos e surrados das crianças. Emerson encontrou uma panela e encheu-a com água e sabão. Pegou uma faca velha de pão em uma gaveta e uma esponja debaixo da pia.
Depois sentou-se em uma banqueta atrás da porta da cozinha e começou a trabalhar. Vê-lo concentrado em sua tarefa me ajudou a ordenar meus próprios pensamentos. Lavar as roupas primeiro, eu disse a mim mesma. À medida que a máquina de lavar roupas funcionava, Larry e eu demos banho nas crianças e as colocamos na cama.
Enquanto lavávamos a louça suja do jantar, Emerson continuava a trabalhar, sem dizer nada. Pensei em Jesus lavando os pés de seus discípulos. Nosso Senhor se ajoelhara, servindo a seus amigos, assim como este homem agora se ajoelhava, servindo-nos. O amor daquele ato simples liberou minhas lágrimas finalmente, e eu chorei copiosamente como criança. Eu podia me mover. Eu podia pensar. Eu podia continuar com o tal negócio de viver.
Uma por uma, todas as pendengas foram realizadas. Então entrei na lavanderia para colocar as roupas na secadora e, quando passei pela cozinha, descobri que Emerson já tinha ido embora. Não sem antes deixar uma fila contra a parede onde estavam todos os nossos sapatos, reluzentes, impecáveis. Mais tarde, quando comecei a fazer as malas, vi que Emerson tinha mesmo inclusive esfregado as solas.
Fomos dormir muito tarde e acordamos muito cedo, mas no momento em que partimos para o aeroporto, tudo o que precisava ser feito, foi. Aquele foi um dos dias mais tristes de toda a minha vida, mas o conforto da presença de Cristo, simbolizado pela imagem de um homem quieto sentado no chão da minha cozinha com uma panela de água, me sustentou.
Agora, sempre que ouço falar de um conhecido que perdeu um ente querido, eu não mais ligo com a vaga oferta: - 'Se houver alguma coisa que eu ...' Em vez disso, tento pensar em uma tarefa específica que se adapte às necessidades dessa pessoa: como lavar o carro da família, levar o cão para o canil, ou simplesmente limpar a cozinha e lavar a louça da casa. E se a pessoa me disser:
- 'Como você sabia que eu precisava disso?'
Eu apenas respondo:
- 'É porque um homem uma vez engraxou meus sapatos'."
Fonte: Reader's Digest.
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Comentários
Tocante. Eu adorava a Reader's Digest desde criança. Obrigado.
Me lembro desse artigo. Na epoca, quando li, chorei. Contei essa historia muitas vezes pra demonstrar o valor de pequenos gestos. Hoje chorei de novo.
O meu pai me apresentou a revista. Além de viciada nos artigos todos eu colecionava as capas. Tinha centenas delas até que um dia alguém as jogou fora. :cry:
Me lembra muito uma ótima frase da Madre Teresa de Calcutá: "As mãos que ajudam são mais sagradas do que os lábios que rezam."