Diz-se popularmente que as abreviações, emoticons e, agora, os emojis trouxeram uma nova forma de linguagem para o mundo. Ainda que guarde verdade também são em parte responsáveis por pessoas que não conseguem dar significado a uma frase sem a presença deles. Termos que antigamente eram facilmente percebidos como irônicos, como jênio, hoje precisam das aspas ("jênio") para que alguns percebam o sentido sarcástico do mesmo. |
Quando foi a última vez que você leu um texto, do princípio a fim, sem se desesperar, sem se cansar, sem interromper sua leitura, sem se distrair e sem querer passar urgentemente a outra coisa?
Esta pergunta, por mais simples que possa parecer, é capaz de revelar uma das tendências contemporâneas mais preocupantes: o impacto da Internet e suas tecnologias derivadas parece ter criado uma nova forma de analfabetismo funcional, em que as pessoas sabem ler, mas são incapaz de manter sua atenção o suficientemente na leitura para compreender as ideias que propõe um texto ou a abstração inerente a toda escrita, e menos para recriar os efeitos emocionais e estéticos próprios de certas obras.
Como talvez muitos de nós sabemos por experiência própria, a leitura experimentou ao longo dos últimos anos uma das transformações mais importantes de sua história. Após ao menos um par de séculos de ser uma prática realizada em silêncio e com verdadeiro grau de solidão, em nossa época ambas condições mudaram radicalmente, pois o silêncio foi substituído por um ruído quase onipresente e multiforme: o ruído da distração; e igualmente, a solidão em que a leitura se desenvolvia foi substituída pouco a pouco por uma peculiar forma da presença e a companhia capaz de irromper em todo momento e circunstância.
Se a leitura costuma ser a priori importante, é porque durante vários séculos todos sabiam que os livros eram a melhor forma de armazenar conhecimento fora de nossa memória. De todos os saltos civilizatórios que a humanidade experimentou, a escrita foi uma das mais decisivas. Sem esta, é muito possível que nossa espécie seguiria repetindo os mesmos erros de nossos ancestrais mais remotos, e ainda que em alguns casos isto ocorre assim, em muitos outros, sobretudo aqueles relacionados com a técnica, a escrita e a leitura foram duas ferramentas importantes para o desenvolvimento da cultura.
Vale a pena recordar que ler não é unicamente decifrar os sinais que conformam uma palavra, um parágrafo ou um livro inteiro, senão ademais entender de maneira ampla o sentido daquilo que se lê: seu sentido literal e seu sentido figurado, o uso que é dado à linguagem, a mensagem que se busca transmitir, a posição ideológica desde a qual se fala e outras sutilezas presentes em um texto. Os analfabetas funcionais de nossa época têm as habilidades necessárias para decifrar as palavras, mas perderam muito de seu entendimento. De certa maneira, este resultado pode ser visto como um desperdício de todos os recursos investidos no esforço de aprender a ler.
Entre outros depoimentos que poderiam explicar esta situação, os mais eloquentes talvez sejam encontrados entre os professores dos níveis primários que, muitas vezes, não podem cobrar o aprendizado integral, pois hoje se dá mais foco nos índices de aprovação do que no próprio estudo. Não são raros os casos de professores que manifestam sua preocupação pela dificuldade dos jovens para manter sua atenção em uma tarefa ou que avançam de série sem que estejam preparados.
Quanto ao caso específico da leitura, o jornal Guardian publicou como exemplo a experiência de Mark Edmundson, professor de literatura inglesa que constatou que existe uma ampla reticência dos estudantes para as obras mais emblemáticas dos séculos XIX e XX, já que não têm a paciência para ler profundamente. Edmundson fala inclusive de uma sorte de "impaciência cognitiva" que se interpõe entre a mente do estudante e a recepção da obra literária.
Por sua vez Ziming Liu, da Universidade Estatal de San José, na Califórnia, realizou estudos em torno de uma prática conhecida no mundo anglo-saxão como "skimming", que pode ser traduzido como "folhear" (com certa evocação à ideia de estilar). De acordo com Liu, não são poucos os estudantes que agora não fazem mais que "folhear" os textos que leem, buscando os termos que consideram importantes para passar logo a outra coisa.
Esta forma de "ler", no entanto, vai contra a natureza da própria leitura. Patricia Greenfield, psicóloga da Universidade da Califórnia em Los Angeles, explicou em suas pesquisas que a leitura ocorre como um circuito que requer de todo um ambiente para se desenvolver e culminar na geração do conhecimento. Interromper alguma das fases desse circuito, suprimir algum de seus componentes, saltar algum dos passos conduz necessariamente a um resultado incompleto e, em não poucos casos, equivocado.
A expectativa de imediatismo à que estamos tão habituados não pode ser cumprida na leitura, onde os resultados são obtidos paulatina e gradualmente, como ápice de um processo que em suas etapas intermediárias agrega cada vez mais pequenos ou grandes componentes que já por si mesmos podem ser considerados ganhos parciais.
Como já assinalamos em outros artigos, nossa época foi afetada de maneira notável pela transformação radical que veio junto com a invenção da Internet e das comunicações digitais. Um âmbito dessa transformação é, claramente, a capacidade de atenção do ser humano. A conexão 24/7, própria da Internet, se transformou em uma conexão também incessante para nossa mente e, mais ainda, em uma espécie de tirania para nosso poder de atenção.
O ser humano ainda se interessa em conquistar o conhecimento? Esta pergunta sem dúvida está na origem do interesse que pode ser absorvido pela leitura. Para além das condições adversas ou favoráveis, o interesse por uma tarefa ou por seus resultados esperados é, indubitavelmente, a peça chave que nos leva a empreender os esforços necessários para realizá-los.
Seria paradoxal que em uma época, alguma vez, chamada de era da informação, as pessoas simplesmente prefiram viver na ignorância, nas mentiras das fakenews, no preconceito ou na ilusão da verdade: nuvens do pensamento que a leitura ajuda a dissipar.
Fonte: Guardian.
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Comentários
Eu gosto de ler e já vem de longe o hábito da leitura com alguns "ruídos" do ambiente, música, conversas e barulhos diversos, creio que consigo captar o sentido da leitura,porém quando é algo mais complexo e que exige uma maior concentração, me desligo destes ruidos. A internet acabou ajudando a disseminar textos, e em contrapartida, tirou muito da foco e da questão do comprometimento com a leitura, é o que observo. Estamos, de fato, vivendo esta realidade de analfabetos funcionais, o que é muito prejudicial ao sociedade como um todo. Òtimo artigo.
Eu li tudo.
Ainda mantenho o costume de parar tudo para ler regularmente. Sempre tenho um livro e uma HQ em leitura. e para lê-los só consigo fazer em completo "isolamento" de tecnologia.