Situado no coração de Istambul e visível do outro lado do Bósforo, fica o Palácio Topkapi (primeira foto deste artigo), um enorme complexo que já serviu de residência real e sede administrativa dos sultões otomanos. Uma parte importante desse complexo era dedicada ao harém imperial, onde moravam as mulheres da família real, incluindo a mãe do sultão, suas esposas e concubinas, seus filhos e os servos que os atendiam. |
Ligada ao harém, mas escondida atrás de um muro alto, ficava a câmara dos príncipes otomanos. Tratava-se de um edifício de um andar, belamente decorado internamente, com teto alto, paredes de azulejos e piso com carpete. Os vitrais ornamentados davam para o terraço alto e o jardim da piscina abaixo.
Apesar do esplendor, esse edifício tinha um propósito sinistro: era uma prisão destinada a manter todos os possíveis sucessores do trono trancados, para que nunca pudessem desafiar o sultão reinante. Essas câmaras eram conhecidas como kafes, cuja tradução literal é "gaiola".
A prática cruel foi inventada no início do século XVII para substituir uma tradição ainda mais bárbara. Desde os primeiros dias do império otomano, era comum um novo sultão matar seus irmãos, alguns dos quais ainda eram bebês sendo amamentados. Como em muitas dinastias islâmicas, os turcos praticavam o "domínio da soberania", onde a herança passava de irmão para irmão, em vez de pai para filho.
Câmara dos Príncipes da Coroa, também chamada de kafes, no Palácio Topkapı, Istambul.
Portanto, todos os homens de uma geração mais velha se exauriam antes que o poder passasse ao homem mais velho da próxima geração. Isso levou muitos a conspirar contra seus próprios irmãos, levando a revoltas, guerras e até assassinatos.
O sultão Mehmed II, que conquistou Constantinopla no século XV, foi o primeiro a transformar em lei essa prática de assassinato ritual, ditando que "pela ordem do mundo", quem conseguia conquistar o trono após a morte do velho sultão devia matar seus irmãos e quaisquer tios e primos inconvenientes para reduzir a possibilidade de uma futura rebelião e guerra civil.
Nos 150 anos seguintes, a lei de Mehmed resultou na morte de pelo menos 80 membros da Casa de Osman. O episódio mais violento de fratricídio na história do império ocorreu na virada do século XVII, quando o sultão recém-coroado Mehmed III mandou estrangular dezenove de seus irmãos com um cordão de seda vermelho e branco.
Detalhe interior da câmara dos príncipes da coroa no quiosque gêmeo dentro do palácio de Topkapi.
Talvez tenha sido esse episódio brutal que causou uma mudança de atitude no filho de Mehmed III, Ahmed I, que se recusou a matar seu irmão com deficiência mental, Mustafá I, ao se tornar sultão. Em vez disso, Mustafá I foi colocado em prisão domiciliar no Palácio Topkapi, e o sistema de kafes nasceu.
Os otomanos perceberam que ao ter todos os herdeiros do sexo masculino confortavelmente confinados, onde não podiam causar problemas, era muito melhor do que matá-los imediatamente, especialmente se o sultão dominante morresse repentinamente sem um filho ameaçando a continuação da linhagem otomana. Nesse caso, o próximo herdeiro mais velho era libertado dos kafes e empurrado em direção ao trono.
Detalhe interior da câmara dos príncipes da coroa no quiosque gêmeo dentro do palácio de Topkapi.
Um príncipe era transferido para os kafes logo após completar oito anos e permanecia lá até morrer de velhice ou ser chamado ao trono. A porta dos kafes era vigiada durante 24 horas, mas os príncipes desfrutavam de alguns graus de liberdade. Eles tinham acesso a tutores e concubinas, embora não pudessem se casar ou ter filhos.
Anos de isolamento deixaram muitos dos presos tão perturbados que foram incapazes de desempenhar suas funções de sultão quando chegou a hora.
Murade IV, obcecado com a lei e a ordem
Murade IV, que subiu ao trono em 1623 após a morte de Mustafá I, governou com mão de ferro. Ele proibiu o consumo de café e proibiu o uso de intoxicantes como álcool e tabaco. Qualquer um que descumprisse a proibição era severamente castigado. Reincidentes eram afogados no Bósforo.
Dizem que Murade IV era tão obcecado com a lei e ordem que teria patrulhado as ruas e as tabernas de Istambul à noite, disfarçado de policial. Se ele visse alguém tomando café ou fumando, revelava-se como sultão e decapitava o agressor com as próprias mãos.
Às vezes, Murade IV ficava sentado em um quiosque do palácio de Seraglio, nas margens do Bósforo, e atirava flechas em qualquer barqueiro que remava perto demais de seu complexo imperial. Muitas vezes, à meia-noite, ele saía de seus aposentos e, com a espada desembainhada, corria pelas ruas descalço, matando quem aparecia em seu caminho.
Ibrahim, o Louco, obcecado por sexo
Outra vítima trágica do sistema de kafes foi Ibrahim, o Louco, que viveu 22 anos nas gaiolas, com medo constante de encontrar o mesmo destino que seus irmãos assassinados. Após a morte do sultão, quando lhe pediram para assumir o sultanato, Ibrahim suspeitou que seu irmão ainda estava vivo e planejava matá-lo. Ele teve que ser arrastado dos kafes a pedido de sua mãe, que então mostrou o corpo do sultão.
Seu reinado de oito anos foi marcado por luxúria e decadência desenfreadas, permitindo que seus companheiros oportunistas governassem em seu nome. Dizem que o homem só pensava "naquilo", passava as 24 horas do dia no harém e tinha idéias bizarras sobre sexo.
Segundo um relato de Dimitrie Cantemir, um soldado e estadista moldavo, Ibrahim costumava levar todas suas concubinas nuas para o jardim do palácio. Então, relinchando como um cavalo, o sultão galopava entre elas em eu cavalinho de faz de conta.
Em outra ocasião, Ibrahim ficou tão excitado ao ver o traseiro de uma vaca em um estábulo que mandou fazer um molde de ouro da bunda da vaca e a enviou ao império com as instruções para que encontrassem uma mulher com um traseiro igual. A despeito de seu prodigioso e doentio apetite sexual, uma vez, durante um acesso de raiva, Ibrahim mandou afogar as 280 mulheres de seu harém no Bósforo.
O efeito adverso de passar longos anos em confinamento é, deveras, bem documentado. Quando Suleyman II subiu ao trono em 1687, após trinta e seis anos nos kafes do palácio de Topkapi, disse após a libertação:
- "Se minha morte foi ordenada, diga... Desde a minha infância, sofri com os quarenta anos de prisão. É melhor morrer uma vez do que morrer todos os dias. Que terror sofremos por uma única respiração."
O último sultão otomano, Mehmet VI Vahidettin, tinha 56 anos quando finalmente chegou ao trono, tendo passado quase toda a sua vida no harém ou nos kafes. Ele foi confinado aos kafes por seu tio Abdülaziz e ficou lá durante o reinado de seus três irmãos mais velhos. Foi o mais longo e último confinamento de um sultão por seus antecessores. Ele reinou até a dissolução do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial.
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