Dica do amigo Rusmea, via Facebook, a BBC publicou uma ótima matéria sobre o polêmico uso do atlas de anatomia criado por Eduard Pernkopf enquanto dissecava corpos dos prisioneiros políticos do regime nazista. Os especialistas dizem que é considerado o melhor exemplo de desenhos anatômicos no mundo. É o mais rico em detalhes e cores vivas que qualquer outro manual. Mas a perfeição tem um custo macabro: o livro de anatomia humana de Pernkopf foi realizado em base aos corpos das pessoas que o nazismo assassinou, mas mesmo assim ainda é consultado. |
Pele, músculos, tendões, nervos, órgãos e ossos revelam-se neste manual com detalhes minuciosos. O "Topographical Anatomy of Man" é para poucos impressionáveis. Mas o que deveriam fazer os anatomistas com um atlas que é ao mesmo tempo cientificamente valioso, mas moralmente contaminado? A resposta é um dilema. Seu gênesis, no entanto, faz com que poucos se atrevam a mostrar em suas bibliotecas.
Geralmente conhecido como o Atlas de Pernkopf, o manual já não é publicado. Só restam à venda cópias usadas de alguns de seus quatro volumes. O conjunto pode custar vários milhares de dólares. No Amazon, o volume 2 do atlas sobre tórax, abdômen e extremidades custa 930.99 dólares. A descrição esclarece que conquanto a capa está gasta, o livro está em "perfeitas condições".
O atlas de Eduard Pernkopf.
Segundo adverte o artigo da BBC, os achados do livro vêm dos corpos de centenas de pessoas assassinadas pelos nazistas. São seus corpos -dissecados e cortados- os que aparecem desenhados ao longo de milhares de páginas. Os críticos advertem que o manual está manchado por seu passado e muitos cientistas tiveram que lidar com a ética à hora de seu uso.
Os médicos admitem sentir-se incômodos com sua origem, mas muitos sustentam que não poderiam fazer seu trabalho sem os volumes de Pernkopf. A neurocirurgiã Susan Mackinnon, da Universidade de Washington em St Louis, por exemplo, costuma recorrer a este material do século XX para operar, usando as imagens de corpos literalmente pelados camada por camada para realizar um procedimento.
O atlas de Eduard Pernkopf.
Há também os que tem dúvidas sobre o não uso do atlas, como o rabino Joseph Polak, um sobrevivente do Holocausto e professor de direito de saúde, que acha que o livro é um "enigma moral" porque deriva do "mal" real, mas pode ser usado a serviço do "bem".
O manual foi um projeto de 20 anos do médico nazista Eduard Pernkopf, que soube abrir caminho entre os acadêmicos austríacos graças a seu apoio ao partido de Adolf Hitler. Pernkopf era um fervente nacional-socialista que a partir de 1938 começou a ir trabalhar usando o uniforme nazista. Quando se tornou reitor da Faculdade de Medicina da Universidade de Viena demitiu todos membros judeus da faculdade, incluídos três prêmios Nobel.
Em 1939, uma nova lei do Terceiro Reich assegurava que todos os corpos dos prisioneiros executados fossem imediatamente enviados ao departamento de anatomia mais próximo para pesquisa e estudo.
Eduard Pernkopf e seus ilustradores.
Durante este período, Pernkopf trabalhava 18 horas seguidas dissecando corpos, enquanto uma equipe de ilustradores criava as imagens para seu atlas. Às vezes, o instituto de anatomia estava tão repleto de corpos, que as execuções eram suspensas.
A doutora Sabine Hildebrandt, da Faculdade de Medicina de Harvard, diz que ao menos a metade das 800 imagens do atlas são de presos políticos. Incluíam homossexuais, ciganos, dissidentes políticos e judeus.
A primeira edição do atlas foi publicado em 1937 e as assinaturas dos ilustradores Erich Lepier e Karl Endtresser usavam suásticas e o símbolo do raio duplo das SS. Inclusive a edição em inglês de dois volumes de 1964 incluía as assinaturas originais com os símbolos nazistas. Edições posteriores tiraram com aerógrafo a insígnia nazista.
A assinatura de Erich Lepier, em um dos desenhos.
O atlas de Pernkopf foi vendido em todo mundo e traduzido para cinco idiomas. O prefacio e as introduções mostram desenhos pictoricamente impressionantes... e ilustrações sobressalentes, mas evitam qualquer menção sobre seu passado macabro.
Atlas de Eduard Pernkopf.
Na década de 90 os estudantes e acadêmicos começaram a perguntar quem eram as pessoas no atlas. E quando foi revelada a brutal história, o atlas deixou de ser publicado em 1994. O livro ficou limitado no formal a fins históricos. No entanto, uma recente pesquisa sobre neurocirurgia assinalou que 59% dos neurocirurgiões conhecem bem o atlas e 13% de fato o usa.
O atlas de Pernkopf.
A precisão do manual não pode ser comparado com nenhum outro, em detalhe e precisão, asseguram. E segundo a doutora Susan Mackinnon, é particularmente útil para cirurgias complexas porque ajuda a descobrir qual dos muitos nervos pequenos que percorrem nosso corpo podem causar dor.
Pernkopf foi expulso da Universidade e preso após a guerra. Ficou enclausurado em uma prisão aliada durante três anos, mas não foi condenou por nenhum crime. Quando foi liberto, voltou à universidade e continuou seu trabalho com o atlas. Um terceiro volume foi publicado em 1952. Morreu em 1955, pouco depois da publicação do quarto e último volume.
Atlas de Eduard Pernkopf.
Mais de 60 anos depois, o atlas segue sendo um dos melhores recursos para obter informação visual para trabalhos anatômicos e cirúrgicos detalhados, segundo a doutora Sabine, que ensina anatomia e já escreveu sobre o atlas:
- "Aqueles de nós que aprenderam a 'ver' com o atlas recorrem a ele sempre quando temos dúvidas. Na cirurgia de nervos periféricos, alguns cirurgiões consideram que é uma fonte de informação única e insubstituível", disse, mas esclarece: - "Eu pessoalmente não uso as imagens de Pernkopf em meu ensino de anatomia a não ser que tenha tempo para falar sobre sua história antes."
A verdade é que a maioria dos especialistas em bioética estão de comum acordo que o atlas é "surpreendentemente detalhado", mas é manchado pelo "passado horrível". E o dilema vai mais longe quando ao usar o livro para colher seus benefícios, implicaria que os envolvidos estão sendo de alguma forma cúmplices com o passado, mas, por outro lado, ao não usá-lo para fazer o bem, perder-se-ia também um lembrete do que aconteceu.
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Comentários
"E o dilema vai mais longe quando ao usar o livro para colher seus benefícios, implicaria que os envolvidos estão sendo de alguma forma cúmplices com o passado,"
Ainda hoje usamos animais para vários estudos sobre diversos medicamentos e/ou procedimentos.
Fico imaginando o que vão pensar de nós no futuro quando souberem que infligimos propositalmente o câncer e várias outras enfermidades em animais para poder testar diversos medicamentos.
Sofrimento por sofrimento, animais também sofrem.
O que está feito está feito, não pode ser desfeito.
Antes usar o sofrimento deles para algo útil do simplesmente jogar fora e fazer que todo o mal que passaram seja sem razão alguma.