Uma nação faminta, uma economia para planejar e um monte de propaganda por fazer. Ver hoje as imagens da grande variedade de embutidos que, ao menos em teoria, tinha disponível o povo soviético durante os anos de pós-guerra é um espetáculo visual, algo que corre na contramão de todas nossas ideias pré-concebidas sobre o que devia ter naquelas famélicas mesas familiares e também um carrossel de desafios das preparações à medida que vamos vendo linguiças, salsichas, salames, mortadelas, entre outros embutidos e defumados mais e mais elaborados e exóticos. |
Conta o youtuber de origem russa My Name Is Andong que tudo decolou graças à viagem a Chicago de Anastas Mikoyan, por então alto cargo do Politburo, em 1936. Ele permaneceu na cidade três meses, quando os países ainda viviam um período idílico e de cooperação, e com sua estadia não só tomou nota de receitas de um monte de produtos que depois deixariam os russos loucos em sua volta a casa, assim como o sorvete, o ketchup ou o hambúrguer.
Ele também aprendeu como as fábricas e empresas estavam aplicando as inovações produzidas pela segunda revolução industrial. Entre elas, descobriram que a pecuária extensiva e a aceleração dos processos podia ajudar no aproveitamento dos resíduos animais para sua reconversão em embutidos, que podiam ser armazenados bem mais tempo.
Tudo isto conduziu ao "Álbum de Receitas do Comissariado do Povo da Indústria Alimentícia da URSS", onde estabeleciam padrões de produção de charcutaria que todos deviam seguir para cada tipo de salame e que deu lugar a esta bela variedade de dezenas de produtos. Você verá uma ampla variedade de exemplos no final do post.
O Instituto Russo de Pesquisa da Indústria da Carne então desenvolveu uma receita para salsicha e a tecnologia para sua produção. Sua primeira produção foi realizada na fábrica de processamento de carne de Moscou, em homenagem a Anastas Mikoyan e batizada de Doktorskaya kolbasa ou Doutor Salsicha, de fato, estiveram a ponto de chamar de Doutor Stalin, mas alguém pensou que não seria tão boa ideia associar o líder do Partido com um "bolo de carne".
A Doutor Salsicha, que na verdade é uma espécie de mortadela fabricada até hoje (foto acima), era uma receita natural, sem aditivos químicos, com uma alta proporção de carnes de vaca e porco (60% de seu peso). Devia ser previamente cozida para resultar macia e alimentar desde crianças a idosos, baixa em gorduras para os doentes do estômago, e sua composição nutricional ajudaria a tirar as classes menos abastadas da fome, bem como permitir um acesso a carne. Uma proteína boa para tudo, razão pela qual o Estado gastou um bom dinheiro em promover seu embutido com o desejo de que chegasse à cada mesa.
Dizer que foi um sucesso seria falar mentira... foi um tremendo sucesso. A mãe do youtuber, que sim passou sua vida, infância incluída, na URSS, recordou que não dava para comer mortadela todos os dias, mas no dia em que compravam era uma festa em casa.
- "Os sanduíches de kolbasa eram os prediletos dos operários nos postos de vendedores ambulantes", disse a mulher.
A Doutor Salsicha, assim como muitos dos embutidos, é a madalena proustiana de toda uma geração da ex-soviética, quase um símbolo de orgulho para os nostálgicos do regime que instrumentalizam estes embutidos como exemplo de prosperidade comunal.
Mas, como dizem: tudo que é bom dura pouco. Quando a União Soviética começou a ruir sobre os próprios pés, e a produção pecuária despencou nos campos, no começo dos anos 70, a Doktorskaya kolbasa deixou de ter o padrão rigoroso de fabricação ao mesmo tempo que começou a desaparecer dos estabelecimentos comerciais. De modo que o Estado permitiu que ela fosse fabricada sob fórmulas com padrões menos rígidos e também com menos carne.
O resultado foi uma progressiva perda de qualidade cada vez maior até que os cidadãos terminaram por dar as costas àquelas mortadelas que já nada tinham a ver com o triunfo gastronômico de anos atrás. Para a posteridade, ficou a lembrança de seu sabor e os quadros propagandísticos daquela era.
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