Faltava pouco menos de um ano para que estourasse a Segunda Guerra Mundial quando uma equipe de alemães com botas cheias de barro aterrissou de maneira totalmente discreta, e quase sub-reptícia, ao longo das fronteiras orientais da Índia. Estavam ali para uma missão de sabotagem em caso da paz com Inglaterra não funcionasse e um conflito se tornasse inevitável? Estavam examinando as vulnerabilidades do Raj? Queriam medir a disposição dos soldados indianos recrutados pelos britânicos? Não! |
Eles tinham outra missão. Uma bem mais singular e rocambolesca: a de descobrir a fonte de origem da raça ariana. Em 1938, Heinrich Himmler, chefe das SS e arquiteto do Holocausto, enviou uma equipe de cinco membros ao Tibete para procurar as origens da suposta raça superior.
Adolf Hitler achava que os nórdicos arianos tinham entrado na Índia pelo norte uns 1.500 anos antes, e que os arianos tinham cometido o crime de miscigenar com o povo local, perdendo os atributos que os faziam racialmente superiores a todas as demais pessoas na terra. De fato, expressou uma profunda antipatia pelo povo indiano e sua luta pela liberdade, articulando seus sentimentos em seus discursos e escritos.
No entanto, segundo Himmler, o subcontinente indiano ainda merecia uma olhada de perto. E aqui é onde o Tibete entrou em cena. Ainda que os tibetanos desconheciam por completo a agenda racista de Hitler, a missão de 1939 segue sendo uma advertência sobre como as ideias, os símbolos e a terminologia estrangeiros podem ser mal utilizados. O autor Vaibhav Purandare relata em seu livro "Hitler e a Índia: A história não contada de seu ódio pelo país e sua gente".
Na Alemanha, esta combinação de mitos antigos e teorias científicas do século XIX começou a converter na crença de que os alemães eram a manifestação mais pura da raça ariana inerentemente superior, cujo destino era governar o mundo.
E estas ideias receberam peso científico graças a teorias mal fundamentadas da eugenesia e a etnografia racista. Ao redor de 1919, a Sociedade Vril deu passo à Sociedade Thule, uma organização fundada pelo barão Rudolf von Sebottendorf, baseada nas tradições de várias ordens como os jesuítas, os Cavaleiros Templários, a Ordem da Golden Dawn e os sufis.
O mito de Thule promovia uma ilha lendária nas geladas terras do norte que foi o lar de uma raça superior, os arianos originais. Como na lenda de Atlântida, os habitantes de Thule se viram obrigados a fugir de alguma catástrofe que destruiu seu mundo. Mas os sobreviventes tinham conservado seus poderes e estavam ocultos do mundo, talvez em túneis secretos no Tibete, onde poderiam ser contatados para que outorgassem estas forças a seus descendentes.
Com tal propósito, em 1935, Himmler estabeleceu uma unidade dentro das SS chamada Ahnenerbe, ou Escritório de Herança Ancestral, só dedicada a averiguar aonde tinha ido parar as pessoas de Atlantes após o "raio azul e o dilúvio", e onde ainda ficavam rastros da raça. A operação de busca recebeu a luz verde de Hitler em 1938, quando enviaram uma equipe de cinco alemães ao Tibete.
Para entender a missão, só é necessário dar um pequena olhada em seus integrantes. Um era Ernst Schafer, talentoso zoólogo de 28 anos que esteve duas vezes antes na fronteira entre Índia, China e Tibete. Ele se uniu às SS pouco depois do triunfo nazista de 1933 e estava louco pela caça e a "coleta de troféus" para sua casa de Berlim. Em uma saída de caça, enquanto tentava disparar em um pato desde um barco no qual estavam ele e sua esposa, escorregou ao apontar e disparou na cabeça de sua esposa acidentalmente, a matando.
O segundo homem era Bruno Beger, um jovem antropólogo que se uniu às SS em 1935. Beger tomava medidas dos crânios e detalhes faciais dos tibetanos e fabricava máscaras. Especialmente para compilar material sobre as proporções, as origens e desenvolvimento da raça nórdica nesta região, segundo dizia.
O barco que transportava os cinco alemães atracou em Colombo, Sri Lanka, em maio de 1938. Dali, tomaram outro a Madras (hoje Chennai) e um terceiro a Calcutá. As autoridades britânicas na Índia desconfiavam dos alemães que penetravam em suas fronteiras e os consideravam espiões. Por isso a princípio se mostraram reacionários a permitir sua passagem. O oficial britânico em Gangtok, no estado de Siquim, que era um reino montanhoso independente nesse momento, também não estava entusiasmado com a concessão da entrada aos homens ao Tibete.
Mas finalmente, ganhou a determinação da equipo nazista. No final de ano, os cinco alemães, com bandeiras com a suástica atadas a suas mulas e bagagem, tinham entrado no Tibete. Não chamaram a atenção. Principalmente porque a suástica também era um sinal onipresente no Tibete, conhecido localmente como "yungdrung", símbolo de sorte. Inclusive hoje em dia, o símbolo é visível fora das casas, dentro dos templos, nos cantos e na parte traseira de caminhões.
Muito dantes da missão de 1939 ao Tibete, os nazistas tinham tomado emprestados símbolos e linguagens asiáticas e utilizavam para seus próprios fins. Vários artigos destacados da retórica e o simbolismo nazista originaram-se no idioma e nas religiões da Ásia. O termo "ariano", por exemplo, vem do sânscrito "arya", que significa "nobre".
Nos Vedas, as escrituras indianas mais antigas, o termo descreve uma raça de pessoas de pele clara da Ásia Central que conquistaram e subjugaram os povos de pele mais escura (ou dravidianos) do subcontinente indiano. A evidência linguística respalda a migração multidirecional de um povo de Ásia central, agora conhecido como indo-europeus, a grande parte da Índia e Europa em algum momento entre 2000 e 1500 a.C., ainda que não está claro se estes indo-europeus eram idênticos aos arianos dos Vedas.
Felizmente para os alemães, o décimo terceiro Dalai Lama tinha morrido em 1933 e o novo tinha só três anos, motivo pelo qual o reino budista tibetano estava sendo controlado por um regente. Um que tratou excepcionalmente bem os alemães, assim como seu povo. Beger, que fazia máscaras faciais, inclusive atuou como uma espécie de médico suplente para os moradores locais durante um tempo.
Em Lhasa, de fato, a insaciável sede dos alemães converteu-se em motivo de conversa entre os nativos. Eles convidavam aos notáveis do Tibete a numerosas festas onde a cerveja fluía livremente e as canções alemãs soavam no gramofone. O que foi denominado oficialmente uma reunião de suásticas ocidentais e orientais era muitas vezes, com efeito, uma festa induzida pelo álcool. Quando não estavam bebendo, também não pesquisavam as raízes da teoria de Himmler. Em vez disso cumpriam com as metas naturalistas da expedição: matavam pássaros, recolhiam sementes,mediam as pessoas e fizeram mapas da região.
Mas o que os budistas tibetanos não sabiam era que, na perversa imaginação dos nazistas, o budismo, assim como o hinduísmo, era uma religião que tinha debilitado os arianos que tinham chegado ao Tibete e tinha provocado a perda de seu espírito e sua força.
E justo quando parecia que Schafer e os demais podiam dedicar mais tempo a explorar para sua verdadeira "investigação" com o pretexto de realizar pesquisas científicas em áreas como a zoologia e a antropologia, começou a guerra. A expedição foi assim interrompida abruptamente em agosto de 1939 quando iniciou a contenda.
Para então, Beger tinha medido os crânios e traços de 376 tibetanos, tinha tomado 2.000 fotografias, fez moldes de cabeças, rostos, mãos e orelhas de 17 pessoas e recolheu as impressões dos dedos e mãos de outras 350. Também tinha reunido 2.000 artefatos etnográficos, e outro membro do contingente tinha tomado 18.000 metros de filme em preto-e-branco e 40.000 fotografias.
O que ocorreu com tudo aquilo? Schafer levou a maioria de seus "tesouros" a um castelo em Salzburgo para onde se mudou durante a guerra. Mas uma vez que chegaram as Forças Aliadas em 1945, o lugar foi revistado e a maioria das imagens e outros materiais foram destruídos. Os outros supostos "resultados científicos" da expedição correram a mesma sorte na guerra: acabaram perdidos ou destruídos.
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