A Primeira Guerra Mundial foi relatada de uma perspectiva quase exclusivamente masculina, porque poucas correspondentes de guerra tiveram acesso às linhas de frente. Embora houvesse muitas repórteres, a maioria ficou longe das cenas de guerra reais, reportando em hospitais de campanha ou se concentrando na frente doméstica e no impacto da guerra sobre os civis. Mas uma mulher corajosa decidiu quebrar a conformidade e foi direto para a cena da ação disfarçada de soldado. Sua incrível história foi descartada por mais de 80 anos como um conto popular, até que sua obscura autobiografia foi descoberta no início dos anos 2000. |
Dorothy Lawrence nasceu em 1896 como filha de mãe solteira, Mary Jane Beddall, sem ser reconhecida pelo pai, Thomas Hartshorn Lawrence, possivelmente em Hendon, Middlesex, Inglaterra, mas algumas fontes colocam seu local de nascimento em Polesworth, Warwickshire. Depois que sua mãe morreu em 1909, a adolescente de 13 anos foi adotada por uma família cristã rica e respeitável.
Quando Dorothy cresceu, ela queria ser jornalista, mas deixar sua marca em uma área dominada por homens provou ser difícil. Ela conseguiu publicar alguns artigos no The Times e na revista Nash's Pall Mall, mas sua determinação de levar seu bloco de notas para a linha de frente foi recebida com desprezo pelos colegas do sexo masculino.
Aos dezenove anos, Dorothy viajou para a França e tentou se esgueirar para a linha de frente, mas foi presa e ordenada a voltar. Ela fugiu para uma floresta e passou a noite dormindo em um palheiro. Enquanto lutava contra mosquitos e outros insetos que a incomodavam, Dorothy resolveu se disfarçar de homem.
- "Vou ver o que uma garota inglesa comum, sem credenciais e sem dinheiro pode fazer", pensou desafiando a ela mesma.
De volta a Paris, Dorothy conheceu dois soldados britânicos e os persuadiu a contrabandear um uniforme cáqui. Eles também forneceram a ela documentos falsos que a identificavam como o Soldado Denis Smith do 1º Regimento de Leicestershire.
Dorothy usava bandagens para aplainar os seios e ombreira para alongar os ombros. Ela também cortou o cabelo curto, escureceu a pele com fluido de Condy, um desinfetante feito de permanganato de potássio, raspou a pele pálida das bochechas para produzir uma erupção cutânea e adicionou um bronzeado usando graxa de sapato. Ela também pediu a seus amigos soldados que a ensinassem a marchar e usar a baioneta.
Com seu disfarce aperfeiçoado, Dorothy partiu para o setor britânico de Somme de bicicleta. Em seu caminho em direção a Albert, Somme, ela conheceu um "sapador" -soldado responsável por tarefas como construir e consertar estradas e pontes, colocar e limpar minas- britânico chamado Tom Dunn, que se ofereceu para ajudá-la.
Tom encontrou para ela uma cabana abandonada na floresta para dormir até que ela pudesse entrar em uma unidade de construção de túneis do exército. O plano funcionou e ela logo se envolveu em cavar sob as linhas inimigas e colocar bombas para derrubar trincheiras inimigas.
Com os alemães lançando fogo de morteiro sobre ela, Dorothy abria caminho com um companheiro em direção às suas linhas, mas apesar de suas palavras de motivação e ações corajosas, ela não conseguia acender o pavio de uma bomba. Todas as noites, após seu trabalho nas trincheiras, ela se retirava para a cabana para dormir em um colchão úmido e comer qualquer ração que Tom e seus colegas pudessem dispensar.
O pior ainda estava por vir. O clima gelado, o fogo incessante e a falta de comida levaram Dorothy a desmaiar após semana nas trincheiras. O preço do trabalho e de esconder sua verdadeira identidade logo dava calafrios constantes e reumatismo em Dorothy.
Preocupada que, se precisasse de atenção médica, seu verdadeiro gênero fosse descoberto e os homens que lhe ajudaram pudessem estar em perigo, após 10 dias (algumas versões dizem que foi 20) ela se apresentou ao sargento-comandante, revelou ser uma civil do sexo feminino e foi prontamente colocada sob prisão militar.
Ela foi imediatamente presa sob a suspeita de ser uma espiã e interrogada minuciosamente. Por ignorar as regras e termos militares, sua ingenuidade foi confundida com teimosia e seu interrogador acreditou que ela estava sonegando informações. De fato, os 3 oficiais que lhe interrogaram a chamara de prostituta várias vezes, em código, sem que ela entendesse o porque riam tanto.
Depois de passar vários dias como prisioneira de guerra, Dorothy foi libertada. Temendo que ela divulgasse informações confidenciais, um juiz a proibiu de vender sua história a um jornal, porque o Exército ficou tão envergonhado que uma mulher violou a segurança e temia que ainda mais mulheres assumissem papéis masculinos durante a guerra se sua história vazasse. Mais tarde, Dorothy se arrependeria de ter feito essa promessa:
- "Sacrifiquei a chance de ganhar dinheiro com artigos de jornal escritos sobre essa escapada, como uma garota obrigada a ganhar seu sustento."
Dorothy sendo presa.
A verdade é que após seu retorno da guerra, a saúde física e mental de Dorothy entrou em declínio, devido a um envenenamento séptico contraído por água suja na França. Mais tarde, ela escreveu sobre crises nervosas que a faziam tremer tanto que não conseguia segurar uma caneta com facilidade.
Esses sintomas talvez fossem as manifestações iniciais de uma doença que, não controlada e mal compreendida, iria consumi-la. É possível que Dorothy estivesse sofrendo de uma forma de estresse pós-traumático após suas experiências no norte da França.
Ao retornar a Londres com a saúde frágil e sem casa ou perspectiva de emprego, seria bem possível que Dorothy tivesse escolhido a ajuda de sua mãe adotiva rica, a Sra. Josephine Fitzgerald, mas algo terrível aconteceu entre as duas que levou a uma ruptura irreconciliável.
Doente e incapaz de explicar seus sintomas para aqueles ao seu redor, Dorothy, febril e delirando, acabou confessando a Josephine que seu pai adotivo tinha a estuprado quando ela era adolescente. Josephine não acreditou e fez um ultimato que ela não aceitou. Quando Josephine morreu, ela deixou dinheiro para vários afilhados, mas nada para Dorothy.
Em 1919, quando Dorothy estava morando em quartos alugados baratos, conseguiu um contrato de livro e finalmente publicou um relato de suas experiências: "Sapadora Dorothy Lawrence: A Única Soldada Inglesa". Embora o livro tenha sido bem recebido na Inglaterra, América e Austrália, as críticas foram menos favoráveis e ainda foi fortemente censurado pelo Ministério da Guerra.
A revista Spectator descreveu Dorothy em sua crítica de setembro de 1919 de seu livro como uma "aberração feminina". Com o mundo desejando se curar das cicatrizes da guerra e avançar para os loucos anos 20, o livro não se tornou o grande sucesso comercial que Dorothy esperava que fosse.
Sem renda e sem credibilidade como jornalista, em 1925 suas ações cada vez mais erráticas chamaram a atenção das autoridades. Ela confidenciou a um médico em particular a história do estupro na adolescência e, sem família para cuidar dela, foi levada para cuidados e posteriormente considerada louca.
Não há evidências de que suas acusações de estupro contra o Sr. Lawrence tenham sido levadas a sério ou investigadas. Dorothy foi encarcerada no asilo por chocantes 39 anos até sua morte solitária e obscura em um asilo psiquiátrico no norte de Londres em 1964. Ela foi enterrada em um túmulo de indigente em um cemitério nos arredores da cidade.
Por que Dorothy morreu tragicamente sozinha em um asilo para lunáticos? É possível que ela tenha sido declarada louca apenas porque ousou falar sobre suas acusações de estupro e já era vista como uma mulher perigosa, subversiva e com problemas psiquiátricos?
Há um século, sempre se acreditava na palavra de um homem rico, temente a Deus, e não na de uma mulher, e as esposas ricas muitas vezes apoiavam seus maridos por razões sociais e financeiras, independentemente do que fizessem. É possível que Josephine não pudesse imaginar que seu marido pudesse ser capaz de algo tão terrível, então a única outra explicação em sua mente era que Dorothy estava louca.
Na época em que ela foi internada, seu relato do estupro foi visto como um comportamento delirante e maníaco, mas, se fosse verdade, poderia explicar de alguma forma por que ela fez o que fez durante a 1ª Guerra Mundial. Sabemos hoje que as vítimas de abuso sexual não valorizam seu próprio bem-estar e Dorothy se colocou deliberadamente em perigo ao ir para a França.
Se ela entendia o perigo que corria, não parecia temê-lo. Naquela época, Albert, em Somme, era um lugar que até os soldados tentavam evitar -eles até se machucavam deliberadamente-, mas ela foi direto para lá.
O historiador e biógrafo Simon Jones descobriu mais tarde que as alegações de estupro de Dorothy eram suficientemente convincentes para serem incluídas em seus registros médicos, que são mantidos nos Arquivos Metropolitanos de Londres, mas não estão disponíveis para acesso geral.
Em 2003, Richard Bennett, neto de Richard Samson Bennett, que era um dos outros soldados, junto com Tom Dunn, que ajudou Dorothy na França, encontrou sua autobiografia enquanto pesquisava a história de sua família nos arquivos de correspondência do Museu Real de Engenheiros em Chatham, Kent.
Em uma investigação mais aprofundada, o historiador Raphael Stipic encontrou uma carta escrita por Sir Walter Kirke, chefe do serviço secreto da Força Expedicionária Britânica, durante a Primeira Guerra Mundial. A carta mencionava uma jovem que vestia roupas masculinas com a esperança de se tornar um correspondente de guerra. Os detalhes de Walter apontavam inequivocamente para Dorothy.
O historiador militar Simon Jones então encontrou uma cópia do livro de Dorothy e começou a coletar notas para escrever sua biografia. Sua história mais tarde se tornou parte de uma exposição no Museu Imperial da Guerra sobre mulheres na guerra.
- "Esta era uma época em que não havia previsão para as mulheres ingressarem em nenhum ramo dos Serviços e elas nem podiam trabalhar em fábricas de munições", disse a curadora Laura Clouting. - "Elas principalmente estavam envolvidas na arrecadação de fundos de caridade ou sucumbiram à mania de tricô. Estamos incluindo Dorothy Lawrence porque ela provou ser a exceção à regra."
Finalmente, mais de 100 anos depois que Dorothy se tornou uma sapadora no Somme, seu lugar na história está finalmente garantido. Várias peças de teatro e um total de três filmes foram feitos sobre sua vida e suas experiências nos últimos anos de sua vida. Dorothy Lawrence finalmente descansou em paz.
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