Quando escrevia o artigo sobre a perigosa estrada localizada no Himalaia hoje, fui verificar se havia mudado alguma coisa no Camino a Los Yungas, mais conhecida como a Estrada da Morte, que interliga a cidade andina de alta altitude de La Paz aos vales subtropicais de Yungas e às planícies amazônicas além. Um passeio pela infame estrada boliviana leva os viajantes a um mundo onde dois recursos provocam fascínio, mal-entendidos e controvérsias há séculos: a coca e o ouro. |
Na atualidade há uma rodovia asfaltada que permite evitar totalmente a Estrada da Morte. Ainda que tenha 20 km a mais para cruzar o mesmo trecho, ela é a preferida pelos menos aventureiros.
A estrada de 64 quilômetros está assentada em uma descida acentuada de 3.500 metros, onde alguns trechos têm apenas 3 metros de largura, com uma série de curvas fechadas e cantos cegos.
Se dois carros toparem de frente, um deles terá que retroceder um bom pedaço de caminho, até uma área reservada para acostamento, para que ambos possam passar.
Barreiras de segurança são uma visão rara, mas santacruzinhas abundam a beira da estrada. Capelinhas ou santacruzinhas ou ainda cruzinhas são santuários, com cruzes brancas, cachos de flores e fotos amareladas, que sinalizam o local onde uma (ou mais) pessoa faleceu em um acidente.
Durante a década de 1990, tantas pessoas morreram em acidentes na Estrada da Morte que o Banco Interamericano de Desenvolvimento a descreveu como "a estrada mais perigosa do mundo".
A estrada foi construída por prisioneiros de guerra paraguaios após a catastrófica Guerra do Chaco, visando ligar La Paz a Coroico, e alguns deles acabaram enterrados às suas margens.
A arriscada aventura de descer Yungas pode rapidamente se tornar uma desventura premeditada, mesmo hoje que é menos movimentada. Do lado esquerdo há uma pirambeira quase vertical com mais de 1.000 metros, enquanto no lado oposto mini cachoeiras espirram na face rochosa da encosta montanhosa.
Um dos acidentes mais trágicos da Estrada da Morte ocorreu no mês de julho de 1983 quando dois ônibus cheios de passageiros se esbarraram em uma curva com canto cego. Como resultado os dois veículos despencaram no vazio cobrando a vida de 86 pessoas.
O último acidente com ônibus nas Yungas aconteceu há 7 anos, mas felizmente não teve vítimas. A reputação macabra da estrada a tornou uma espécie de atração turística e atrai um fluxo constante de turistas, sobretudo ciclistas ansiosos para pedalar morro abaixo. Por isso, na última década, um total de 18 ciclistas perderam a vida no local, depois de supostamente perder o freio.
Hoje o Camino a Los Yungas atrai cerca de 35.000 turistas por ano e é uma das principais atrações turísticas de La Paz. Muitos operadores turísticos atendem ao mountain bike downhill, promovendo excursões regulares na estrada.
A rota também é a porta de entrada para uma região negligenciada com associações poderosas. As Yungas -que significa "terras quentes" na língua indígena aimará, falada por cerca de 1,7 milhão de bolivianos- são uma zona de transição fértil e de grande biodiversidade entre os Andes e a Amazônia, intimamente ligada a dois recursos que sempre provocam fascínio e reverência, incompreensão e polêmica: coca e ouro.
Se tudo correr bem, ou seja, se o veículo que você estiver usando não despencar no precipício, a travessia da Estrada da Morte dura em torno de 2 ou 3 horas, quando você finalmente chega a Coroico, outrora um centro de mineração de ouro, agora uma cidade turística, encravada em uma encosta verde-esmeralda, que tem um clima ameno e vistas panorâmicas de colinas ondulantes.
Solos ricos e chuvas abundantes fizeram das Yungas, que correm ao longo das encostas orientais dos Andes, um centro agrícola. Cruzada com antigas rotas comerciais outrora percorridas por caravanas de lhamas, a região era um celeiro para os Incas e impérios anteriores, como o Tiwanaku.
Esta tradição continua até hoje e se você decidir fazer uma caminhada pelas trilhas centenárias que levam em direção ao Rio Coroico, verá socalcos cheios de pés de café, banana, mandioca, goiaba, mamão e frutas cítricas. Há também plantas arbustivas com galhos finos, folhas ovaladas e bagas avermelhadas: a coca.
A coca tem sido fundamental para muitas culturas sul-americanas por milênios, e a Bolívia é um dos maiores produtores do continente, com centenas de quilômetros quadrados dedicados à cultura, dois terços dos quais estão nas Yungas.
Ricas em vitaminas e minerais, as folhas agem como um estimulante suave e ajudam a compensar a hipobaropatia, também conhecida como mal da montanha; saciar a fome, a sede e o cansaço; ajuda a digestão e até suprime a dor. Por mais de 8.000 anos, elas foram usados em cerimônias religiosas e como remédio, moeda e, mais recentemente, como recreativo social e decorrente indutor de doenças.
Os espanhóis inicialmente demonizaram a coca. Mas depois de perceber o efeito benéfico que tinha sobre os povos indígenas forçados a trabalhar nas minas e nas plantações, as autoridades coloniais mudaram de opinião e comercializavam a colheita. O interesse pela coca cresceu lentamente além do continente. Acredita-se que a primeira referência em inglês seja o poema de 1662 do londrino Abraham Cowley, "A Legend of Coca",
Durante o século 19, a coca -e seu alcaloide psicoativo, a cocaína- tornou-se cada vez mais popular na Europa e na América do Norte, aparecendo em bebidas, tônicos, remédios e vários outros produtos. Entre eles estava o Vin Mariani, um vinho francês com mais de 200 mg/litro de cocaína.
Os anúncios diziam que "refrescava o corpo e o cérebro" e entre seus mais destacados enófilos estavam Thomas Edison, Ulysses S. Grant, Emile Zola e o Papa Leão XIII, que até estampou uma pôster promocional do mesmo.
No estado norte-americano da Geórgia, o sucesso de produtos como Vin Mariani inspirou o farmacêutico e ex-soldado confederado John Pemberton a criar o Vinho de Coca Pemberton, que originalmente incluía uma mistura de cocaína e álcool, bem como extrato de noz de cola rico em cafeína. Mais tarde, teste produto passou a se chamar Coca-Cola: embora a cocaína e o álcool tenham sido removidos há muito tempo, o extrato de folha de coca sem cocaína ainda é usado como aromatizante.
A cocaína e os produtos à base de cocaína eram legais na Europa e na América do Norte no final do século 19 e início do século 20, defendidos por pessoas como Sigmund Freud, que escreveu vários artigos sobre o assunto e experimentou em si mesmo:
- "Uma pequena dose me levantou para as alturas de forma maravilhosa", contou ele sobre a experiência.
Mas a droga caiu em desgraça, tornou-se associada ao vício e à criminalidade e acabou sendo proibida em grande parte do mundo, assim como a coca, embora esta última tenha permanecido legal na Bolívia.
Como a demanda por cocaína disparou novamente na década de 1980, a "guerra contra as drogas" devastou a vizinha região de Chapare, na Bolívia, que se tornou uma importante área de produção de coca: as atividades antinarcóticos resultaram em abusos generalizados dos direitos humanos, incluindo assassinatos, tortura , prisões e detenções arbitrárias, espancamentos e roubos.
Em resposta, os protestos populares dos cocaleiros -plantadores de coca, a maioria dos quais com herança indígena quíchua ou aimará- ajudaram na ascensão de Evo Morales, líder das Seis Federações dos Trópicos de Cochabamba, um sindicato que representa os plantadores de coca.
Hoje, a coca é considerada uma planta sagrada por muitos bolivianos, usada regularmente por um terço da população -a cocaína, porém, é ilegal-. Em seu livro "Coca Yes, Cocaine No", Thomas Grisaffi escreveu:
- "A coca é aceita na maioria dos setores, regiões e etnias. É melhor considerá-la um costume nacional, assim como beber chá é para os britânicos."
O rio Coroico é símbolo de outro recurso das Yungas: o ouro. A chamada rota do ouro se estende por 350 km através dos canais da região e na vizinha Amazônia e atrai garimpeiros há séculos. Embora os leitos dos rios, córregos e riachos tenham se mostrado ricos em depósitos do metal dourado, eles nunca produziram o suficiente para saciar o apetite dos conquistadores e daqueles que seguiram seu rastro. Como resultado, incontáveis rumores de fortunas perdidas e tesouros escondidos circulam
até hoje pelas Yungas e regiões vizinhas.
Muitos mitos estão ligados aos jesuítas, que -por meio da exploração dos povos indígenas- acumularam grande riqueza na América do Sul antes de serem expulsos em 1767, depois de se tornarem poderosos e independentes demais para o gosto da coroa espanhola. O que aconteceu com as riquezas da ordem logo se tornou assunto de muita especulação, pouco disso ligado à realidade.
Percy Harrison Fawcett, um excêntrico explorador britânico que passou anos viajando pela América do Sul no início do século 20, tem uma interessante passagem dessa febre do ouro. Em seu livro "Exploration Fawcett", ele descreve a história de um "grande tesouro" enterrado pelos jesuítas em um túnel perto do rio Sacambaya, que serpenteia pelo sul das Yungas.
- "Ao saber de sua expulsão iminente, o ouro jesuíta foi recolhido em Sacambaya, e precisaram de seis meses para fechar o túnel", escreveu Percy. Os seis indígenas bolivianos que cavaram o túnel e sete dos oito padres que sabiam seu paradeiro foram posteriormente assassinados para proteger o segredo, acrescentou ele. O próprio Percy acabou desaparecendo enquanto procurava a suposta cidade amazônica perdida de "Z".) Apesar de uma clara falta de evidências, essa forma de mito tentador provou ser notavelmente resiliente.
Além dos contos, uma espécie de corrida do ouro está em andamento em partes das Yungas e da Amazônia boliviana, provocada pelo aumento dos preços do ouro. Grande parte da mineração é ilegal e está ligada ao crime organizado, hidrovias envenenadas e aumento do desmatamento, conforme destacado em um relatório de 2018 do Projeto de Informação Georreferenciada Socioambiental da Amazônia, uma coalizão de organizações da sociedade civil.
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