O debate anteriormente adormecido sobre o papel de Portugal no comércio de escravos e outros abusos da era colonial voltou à vida em abril passado, depois que seu Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, sugeriu que o país deveria reparar tais "crimes". Mas o governo de centro-direita rejeitou a ideia, enquanto o partido de extrema-direita Chega procurou uma moção de repúdio no parlamento tentando condenar o presidente e os seus comentários, com seu líder André Ventura dizendo que - "...sem dúvida representam uma traição ao povo português e à sua História." |
Foto restaurada e colorizada de escravos de uma fazenda localizada em Cruzeiro-SP, cerca de 1881. Via: Marc Ferrez.
Foi numa ampla conversa com correspondentes estrangeiros que o presidente foi questionado se eram devidas reparações pelo tráfico de escravos, durante o qual os navios portugueses levaram milhões de pessoas de África, principalmente para o Brasil, onde foram forçadas a trabalhar nas plantações.
Na sua resposta, não mencionou a escravatura, mas disse que Portugal deveria assumir "total responsabilidade" pelo seu passado, citando massacres e saques como abusos pelos quais poderia "pagar os custos".
Hoje, os problemas da Europa são do mundo, mas os problemas do mundo não são da Europa, conforme disse o ministro das relações exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, no fórum Globesec 2022 na Eslováquia.
A pergunta que nunca se cala é: onde foi parar a riqueza roubada do Brasil no período colonial? Com as descobertas em Minas Gerais, no fim do século 17, o ouro passou a ser o principal produto extraído da então colônia portuguesa. Até ali então dominava a cultura da cana-de-açúcar em declínio devido à concorrência no Caribe.
A quantidade de ouro pilhado do Brasil durante a "corrida do ouro" não é exata porque alguns registros se perderam de forma suspeita com o incêndio na alfândega de Lisboa em 1764. Ademais mineiros e comerciantes contrabandeavam o ouro dentro e fora do território para fugir da tributação do quinto, o imposto real de 20% da produção de ouro.
Uma estimativa amplamente utilizada é a compilação feita pelo historiador Virgílio Noya Pinto, que estimou que a produção brasileira durante o século 18 foi de 880 mil quilos, com base nos registros de remessas de ouro que chegavam à Europa vindas do Brasil.
Outro cálculo muito considerado na atualidade é a do geólogo Pandia Calógeras, que diz que o ouro roubado do Brasil somou quase uma tonelada, especificamente 948 mil quilos. O contrabando eleva este número para mais de três toneladas.
Só para se ter uma ideia do que isso significou naquela época, o registro do Departamento de Minas dos EUA indica que, no século 18, a produção de ouro do Brasil respondia por 85% da produção mundial. No século 17, era de 66%, e, no século 16, de 39%.
E onde foi parar este ouro todo? Lógico, em solo europeu. Naquela época a Europa passava por uma grande escassez de metais preciosos, após a euforia inicial com as descobertas das minas de prata pelos colonizadores espanhóis. Essa prata estava esgotando nas trocas comerciais entre europeus e asiáticos, e também para fabricar moedas. Para piorar a situação os holandeses haviam tomado inúmeros entrepostos de saques e roubos portugueses na Ásia.
Assim as minas brasileiras passaram a ser exploradas por colonos portugueses com mão de obra escrava. O Brasil não importou escravos, Portugal sim! Pequena parte do "quinto" ficava aqui no Brasil para pagar despesas públicas e algumas obras, e a maior parte era usada para financiar obras públicas faraônicas em Portugal, como o suntuoso Palácio Nacional de Mafra.
Mas e os 80% que, em teoria, ficavam com os colonos, ficaram no Brasil? Lógico que não, os colonos usaram o ouro para construir suas próprias fortunas na Europa. Mas claro usaram o ouro para fazer comércio, como comprar suprimentos, roupas e produtos para serem usados ou revendidos dentro do território brasileiro, em transações comerciais.
Foto restaurada e colorizada de escravos de uma fazenda localizada em Cruzeiro-SP, cerca de 1881. Via: Marc Ferrez.
Mas grande parte, quase a totalidade acabava parando em Portugal, a terra dos "exploradores", no sentido ruim da palavra. Por quê? De onde vinha a grande maioria dos produtos vendidos aqui? O Brasil não produzia praticamente nada naquela época, então vinham de comerciantes de Portugal, mas os portugueses também não produziam praticamente nada de manufaturados.
Ai é que entra na contabilidade Inglaterra e França. Desde o início do século 18, os britânicos e franceses firmaram acordos comerciais vantajosos com Portugal, como o famoso Tratado de Methuen.
Portugal, que pouco se lixava para a indústria interna, porque podia comprar artigos manufaturados mais baratos no estrangeiro do que em seu próprio território, cedeu o ouro brasileiro abundante em troca de mercadorias de luxo. As trocas econômicas entre esses países eram desiguais, levando um fluxo enorme de ouro brasileiro à Inglaterra e França.
Isso quer dizer que, enquanto Portugal tinha a moeda, os ingleses tinham produtos para vender. O historiador Noya Pinto chegou a escrever que os ingleses e franceses absorviam quase 60% do ouro brasileiro, somente com o comércio com Portugal. Havia uma demanda muito grande não só pela moeda que ia circular na economia, mas também pelo ouro como estoque monetário para os bancos que estavam surgindo naquele momento. Na verdade, grande parte do ouro colonial brasileiro ainda repousa no Banque de France.
Isso ajuda a explicar como a troca financeira britânica e francesa acabou incrementando a mineração e pilhagem de riquezas no Brasil, e, por outro lado, como o ouro brasileiro fomentou a revolução industrial e o estabelecimento do capitalismo no mundo enquanto ficamos chupando o dedo.
E se essa enxurrada de ouro foi capaz de mudar a economia do outro lado do mundo, o que aconteceu por aqui? Ele modificou por completo a paisagem econômica e social da América portuguesa. Para suprir a demanda das minas, o Brasil viveu uma explosão no número do tráfico negreiro praticado por portugueses.
O banco de dados Slave Voyages mostra que no século 18 houve um salto gigantesco no número de escravizados que chegaram ao Brasil: de 910 mil no século 17, para 2,2 milhões no século 18.
Entretanto, ao contrário da conhecida xenofobia europeia, o Brasil abraçou negritude e nossa miscigenação nos tornou um dos povos mais lindos do mundo.
No centro das exigências de reparações está a compreensão de que o passado não pode ser apagado e não deve ser ignorado. As antigas potências coloniais não podem desfazer os danos que infligiram às pessoas escravizadas e colonizadas, mas podem colaborar de boa fé com os descendentes dessas pessoas e trabalhar para resolver as desigualdades sistêmicas que existem hoje.
Ironicamente, no século XIX, a Grã-Bretanha e a França votaram que aqueles que precisavam de reparações não eram os anteriormente escravizados, mas os escravizadores. Após a Lei de Abolição da Escravatura em 1833, os proprietários de plantações britânicos receberam enormes compensações pelo prejuízo causado por terem as suas "propriedades" -pessoas escravizadas- tiradas deles.
O Brasil quase deu um passo nessa direção. Antes da abolição da escravidão, em 1888 com a Lei Áurea, as leis do Ventre Livre e a do Sexagenário já previam indenizações aos ex-proprietários de escravos no Brasil. Após a abolição, Rui Barbosa, então empossado em sua função de Ministro da Fazenda, mandou destruir todos os livros de matrícula, documentos e papéis referentes à escravidão existentes no Ministério da Fazenda, de modo a impedir qualquer pesquisa naquele momento e posterior a ele que visasse a indenização de ex-proprietários de escravos.
Rui Barbosa via na escravidão o maior dos problemas do Brasil, não tolerando meios-termos quanto ao seu fim, a exemplo das Leis do Ventre Livre e do Sexagenário: se era para deixar de existir a escravidão, que fosse extinta por completo. O Ministro afirmava que, se era para alguém ser indenizado, deveriam ser os próprios ex-escravos.
Os governos europeus e norte-americanos do século XXI resistem a discutir a questão das reparações. Quando tomam medidas para resolver a desigualdade e o racismo atuais, fazem-no sinalizando virtude sem ligar explicitamente estes problemas aos legados da escravatura e do império. E assim cabe às instituições individuais decidir se investigam as suas histórias e que tipo de reparações podem ser apropriadas.
Por muito tempo, ouvimos mentiras sobre o passado. Mesmo durante a descolonização na segunda metade do século XX, as potências coloniais lutaram para se apresentarem como pessoas que concediam a independência de forma benevolente, após séculos de governo de mão pesada estabelecido.
No entanto, nas últimas décadas, novas narrativas surgiram. Narrativas que desafiam os antigos contos monocromáticos de conquistas corajosas e missões civilizatórias. Revelam a brutalidade do passado e as realidades sombrias do presente: discriminação contínua, desigualdade, trauma e violência. Quando o "descobridor" Pedro
Álvares Cabral aportou no Brasil existiam ao menos oito milhões de habitantes nativos. Quando, 300 anos depois, Dom Pedro deu o Grito da Independência, eles eram apenas 250 mil.
O sincericídio de Marcelo Rebelo de Sousa não ficou sem reposta, depois que o presidente ampliou os seus comentários anteriores, argumentando que a ajuda ao desenvolvimento e o perdão da dívida poderiam ajudar a reparar o passado colonial.
Em uma declaração concisa, o governo disse que "segue a mesma linha" dos seus antecessores em matéria de reparações: - "Não houve e não há nenhum processo ou programa de ações específicas para este fim."
À medida que as populações da América do Norte e de muitos países europeus se tornam mais diversificadas, e à medida que a desigualdade de riqueza continua a crescer e as alterações climáticas afetam desproporcionalmente os descendentes das pessoas colonizadas, podemos esperar que os apelos por reparações se tornem cada vez mais altos.
Também ouviremos objeções ruidosas, por parte daqueles que beneficiam do status quo ou que não conseguem (ou não querem) imaginar um mundo diferente e melhor. Mas é só confrontando o passado que podemos reimaginar o nosso futuro, e é só através das reparações que este novo futuro pode tomar forma.
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