Esta história, e suas diferentes versões, vem sendo contada mais recentemente como uma parábola de caráter inspiracional nas redes sociais, mas sua origem real remonta -ao que me lembre- aos relatos do delicioso folhetim em formato de bolso Reader's Digest (Seleções). A revista, para quem não conheceu, tinha várias sessões: notícias atuais, tirinhas, piadas e uma sessão de relatos dos leitores, que contavam histórias, supostamente reais, geralmente narradas com uma abundância de detalhes devido a falta de ilustrações e fotos, que depois de lidas eram espalhadas em forma de conto entre os amigos. |
Em um desses relatos, uma mulher do interior contou o que ela presenciara durante um dia que passou com uma amiga. É uma história curtinha, mas muito poderosa, sobre a hipocrisia humana. Eu tentei contatar a seção de "True Stories" da referida editora, mas não obtive resposta; então vou contar (e dramatizar) da forma que eu me lembro.
Era meu primeiro dia visitando minha amiga de infância. Ana enricou desde que veio morar na cidade grande e ela me acordou bem de manhãzinha com a promessa de me mostrar toda a cidade.
Quando íamos embarcar em seu carro reluzente apareceu um senhor no portão vendendo alguma coisa. Fui até lá e vi que eram ovos. Ana se aproximou e disse:
- "Muito obrigada, mas não preciso de ovos hoje não."
Vendo a situação do senhor, idoso e com um carrinho cheio de bandejas de ovos me enterneci. Olhei para minha amiga que parece ter entendido a situação:
- "Qual o preço dos ovos?", disse ela, com um jeito meio impaciente.
- "10 reais a bandeja, Dona.", respondeu o homem.
- "Pago 10 por duas, é pegar ou largar", propôs minha amiga.
- "Pode ser, Dona! Já é um bom começo porque eu não consegui vender quase nada nestes últimos dias."
Ela pegou o dinheiro em sua bolsa, pagou, pegou as duas bandejas, enquanto o senhorzinho agradecia a compra e abençoava:
- "Obrigado Dona! Que Deus te ajude muito!"
Ana seguiu com os ovos até a garagem com um ar de vitoriosa. Depositou os ovos em cima de uma caixa e disse.
- "É assim que negociamos com essa gente. Se não formos firmes no propósito eles nos enfiam qualquer porcaria."
Não questionei, sei lá... talvez ela já conhecesse o homem, pensei comigo mesma.
Aquela manhã foi maravilhosa, conheci lugares lindos, lojas badaladas e muitos pontos turísticos. Na hora do almoço fomos a um restaurante de frutos do mar (adoro!). Como Ana sabia desta minha preferência, disse que eu podia pedir o que quisesse. Não queria aproveitar da situação, mas nunca havia comido lagosta então era isso que iria pedir. Quando vi o preço no menu meus olhos quase caíram da cara.
- "Nossa, isso dá para comermos lá em casa durante uma semana inteira", falei instintivamente sem perceber. Ana riu sem parar:
- "É lagosta que você quer, né? Então vamos comer", disse minha amiga, já chamando o garçom.
Sem dúvida, uma delícia, mas no final fiquei com uma leve sensação de insatisfação que deveria ter escolhido uma prato a base de camarão mesmo. Ana mal tocou em seu prato! Agora já foi!
Quando o garçom trouxe a conta estiquei o olho e vi que havia custado 210 reais. Fiz menção de abrir minha bolsa e Ana logo interveio:
- "Enquanto você estiver aqui na minha cidade, a conta é minha. Nem pense!"
- "Olha que assim não vou querer ir embora, hein", ri enquanto minha amiga colocava 250 reais junto a fatura e dizia ao garçom:
- "Pode ficar com o troco!"
No momento a ficha não caiu, mas quando entrava no luxuoso carro de Ana o espírito de Nazaré Confusa apossou-se de mim: uma bandeja, 30 ovos, 10 reais; uma gorjeta de 40 rendia 120 ovos (ou 240 pechinchando sem necessidade). Como assim?
Durante todo o trajeto até sua casa aquilo ficou formigando na minha cabeça e quase não falei nada. Minha vontade era perguntar para a minha amiga, mas não tive coragem com medo de que ela ficasse ofendida.
Isto tudo pode ter parecido bastante normal e proveitoso para o dono do restaurante, mas muito doloroso para o pobre vendedor de ovos. Sei lá... deve ser coisa de cidade grande.
Provavelmente muitos se identificaram com esta história: por que sempre mostramos que temos o poder quando compramos dos necessitados? E por que nos tornamos tão generosos com aqueles que nem sequer precisam da nossa generosidade?
Minha avó, uma neguinha de 1m50, costumava comprar qualquer "porcaria" de pessoas que batiam à sua porta, embora não precisasse delas. Minhas tias ficavam tiririca com este costume e ela sempre dizia a mesma coisa:
- "Eu realmente não preciso disso, mas eles precisam do dinheiro. Comprando isso, estou lhes devolvendo sua dignidade, minha filhas."
Minha querida avó era pequena apenas na estatura.
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Comentários
Eu acho que sou muito sortudo então, pq não conheço ninguém assim.
Que sejam capazes de não comprar os ovos pq não precisam até que sim, conheço vários, mas que destrate os outros? Realmente não consigo lembrar de nenhum conhecido que aja assim.
Fica bonito no papel pra gente ler e se achar moralmente superior aos esnobes que a gente fantasia existirem em nosso círculo social, mas pega aí a sua lista mental de amigos e faça as contas... dificilmente vc vá listar mais de 2 ou 3 espíritos de porco desses. Provavelmente nem vá conhecer algum assim.
Pra mim o texto é só mais umas bobagenzinhas de corrente que rola em whatsapp de tia solteirona.
Não há uma explicação simples para este comportamento humano tão estendido na atualidade, mas na maioria das vezes estas pessoas não são conscientes de suas estratégias de chantagem, pressão ou manipulação. Aprenderam a satisfazer suas necessidades mais básicas e importantes de forma indireta através da manipulação, de cima pra baixo.
Não é que tenham intenção de magoar os mais pobres (ainda que façam), mas não aprenderam a ser assertivas ou, em números menores, desenvolveram uma personalidade complicada, que pode ocultar patologias clínicas e psicológicas, quando o manipulador sabe o que faz e desfruta tendo a batuta de comando.
Uma das explicações frias para este comportamento é o princípio de carestia, quando a influência é baseada no fato do valor que têm as coisas para nós conforme sua escassez. Quase sempre encontramos dificuldades para valorizar algo com objetividade, mas se vermos que muitos outros desejam o mesmo que nós, então pensamos que provavelmente tem mais valor.
Para o homem da história, uma bandeja de ovos tem muito valor, pois é o que paga as suas contas, para a mulher é apenas um item a mais na sua prateleira. O princípio de carestia, assim como outros de índole interperssoal, ajuda a simplificar o tratamento da informação pois é usado como indicador do valor ou aceitação de uma determinada coisa.
Sendo assim, a mulher sabia que podia manipular o vendedor de ovos (para demonstrar poder), porque é algo que todo mundo pode ter. No entanto deu dinheiro ao dono do restaurante para impressionar a amiga e manipular seu próprio ego (para provar que tem poder), porque é algo que nem todo mundo pode ter.
ok , otimaaa historia, mas continuo sem explicação do porque sermos assim ? :-(
será porque gostamos de exercer o nosso poder e tiranina sobre o elo mais fraco da sociedade ?
percebam que infelizmente me inclui !