Nos dias anteriores à anestesia, a perspectiva de ter que passar por uma cirurgia era muito mais horrível do que a aflição que o procedimento deveria curar. Sem os meios para deixar o paciente inconsciente, os cirurgiões administravam ópio ou licor em uma tentativa inútil de entorpecer a dor, mas muitos pacientes misericordiosamente passaram pelo processo e sobreviveram para contar história... uma terrível e dolorosa. |
Para nós da atualidade é difícil imaginar como seria suportar a dor física, bem como o trauma mental de observar sua própria operação. Mesmo que o paciente sobrevivesse à cirurgia, ainda havia o risco de infecção, pois para compreender a necessidade da total higiene haveria que compreender primeiro a teoria dos germes, inexistente naqueles tempos.
Frances Burney, também conhecida como Fanny Burney, uma romancista inglesa do século XVIII, nos deixou um relato angustiante de sua própria cirurgia, pela qual foi submetida sem o benefício da anestesia para remover um tumor de seu seio. A riqueza de detalhes em sua narrativa e a calma com que ela repassa os horrores fazem desse um dos trabalhos mais poderosos e corajosos da literatura, quase doloroso demais para ler.
Fanny Burney tinha quase sessenta anos e morava em Paris em 1806, quando começou a sofrer dores no seio direito, que gradualmente se agravou tanto que ela não conseguia mais levantar o braço. Os médicos diagnosticaram sua condição como câncer de mama e recomendaram uma mastectomia.
Burney procrastinou por meses, esperando que o problema desaparecesse, mas quando seu desconforto piorou progressivamente, relutantemente se submeteu à decisão de seus médicos. A data de sua operação foi marcada para 30 de setembro de 1811 e, enquanto esperava o fatídico dia chegar, a ansiedade e a apreensão tornaram-se quase esmagadores. Isso piorou quando soube na manhã do dia marcado que os cirurgiões adiaram a intervenção por duas horas.
- "Andei para um lado e para o outro trás até acalmar toda a comoção e me tornar, aos poucos, quase entorpecida. Tentei não pensar em nada, sem sentimento ou consciência", escreveu ela.
Às três da tarde, quatro carruagens chegaram à sua porta e sete homens circunspectos desceram, vestidos de preto solene. Fanny recebeu uma bebida, provavelmente misturada com láudano, para acalmar seus nervos. Uma cama foi deslocada para o meio da sala e foram colocados vários lençóis velhos, um sobre o outro, para não estragar o bom colchão ou a roupa de cama.
- "Agora comecei a tremer violentamente, mais com desgosto e horror dos preparativos do que com a dor. Acho que vou acabar sepultada nesses lençóis"
O cirurgião responsável, M. Dubois, ordenou que colocassem Fanny sobre a cama e colocou um lenço fino sobre seu rosto.
- "Era transparente, no entanto, e vi, através dele, que a cama foi instantaneamente cercada pelos 7 homens e minha enfermeira. Eu me recusei a ser subjugada força; mas quando, através da cambraia, vi o brilho do aço polido, fechei os olhos, senti as mãos segurando meus braços e pernas e esperei pelo que estava para acontecer."
Ferramentas cirúrgicas antigas
Momentos depois, a lâmina mergulhou em seu peito.
- "Foi meu maior grito, que durou sem parar durante todo o tempo da incisão. E quase me surpreendo pois ainda posso ouvi-lo, tão angustiante foi a agonia", contou Fanny, explicando que foi ainda pior quando a ferida foi aberta e o instrumento de corte foi retirado: - "Achei que a dor ia ceder, mas não diminuiu, pois o ar que subitamente se precipitava nessas partes delicadas parecia uma massa de agulhas pontiagudas e bifurcadas, que rasgavam as bordas da ferida. Quando novamente senti o instrumento de corte, fazendo uma curva e cortando o nódulo, enquanto a carne resistia de uma maneira tão forçada a ponto de se opor e cansar a mão do cirurgião, que ele foi forçado a mudar da direita para a esquerda, então, de fato, senti que seria preferível morrer."
Repetidas vezes, os cirurgiões cavaram seu peito cortando o tecido infectado, e ela podia sentir e ouvir o raspar da lâmina contra o esterno. Seu sofrimento durou um total de vinte minutos, que demorou toda uma eternidade.
- "Quando tudo terminou, e me levantaram para que eu fosse colocada em outra cama, não tinha forças... estava tão totalmente aniquilada, que fui obrigada a ser carregada e não consegui nem sustentar minhas mãos e braços, que pendiam como se eu tivesse sem vida; enquanto meu rosto, como a enfermeira me disse, estava totalmente incolor. Essa remoção me fez abrir os olhos e então vi meu bom Dr. Dubois, pálido quase como eu, seu rosto manchado de sangue, com uma expressão carregada de tristeza, apreensão e de quase horror."
Fanny levou vários meses para se recuperar e, embora seja impossível saber hoje se o tumor removido era realmente cancerígeno, a cirurgia supostamente salvou sua vida. Ela viveu mais vinte e nove anos e nem a dor original nem o tumor voltaram.
Nove meses após a intervenção cirúrgica, ela escreveu uma carta de 12 páginas para sua irmã Esther, com um relato detalhado de sua mastectomia e a enviou sem reler ou revisar porque "a lembrança ainda era muito dolorosa". No entanto, anos depois, ela revisitou suas memórias miseráveis quando mais uma vez escreveu um relato dessa experiência e de seus anos em Paris, que foi publicado no Waterloo Journal.
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Comentários
Já passei por uma situação onde a anestesia não pegou. Foi durante a drenagem de um cisto (no seio) no Pronto Socorro. Foi a pior dor da minha vida. Saí de lá soluçando de tanto chorar. Pior foi o trauma que ficou, só de ver lâminas eu começo a ficar ansiosa.
Esta senhora não recebeu a anestesia, mas uns tempos atras li uma reportagem de uma senhora, Donna Penner, que a anestesia não pegou e por causa do relaxante muscular ela ficou paralisada não podendo falar e passou todo procedimento operatório acordada sentindo a horrível dor.