Depois da Primeira Guerra Mundial, a consternação geral ante os horrores da guerra química, responsável pela morte dolorosa de 90.000 soldados e de que cerca de um milhão de homens regressassem para casa cegos, desfigurados ou com lesões, impulsionou a negociação para que aquilo não voltassem a ocorrer. Como resultado destas negociações, em 17 junho de 1925 foi assinado o Protocolo de Genebra que, ainda que nada dizia a respeito a produção, armazenamento, estocagem ou transferência, proibia o uso de armas químicas e biológicas. |
Com o estouro da Segunda Grande Guerra, e devido à desconfiança entre os países beligerantes, ambas partes começaram a alojar reservas de armas químicas. Claro está, todos com o argumento de que estavam fazendo para o caso de que o inimigo decidisse utilizá-las primeiro.
Finalizada a campanha do norte da África, no verão de 1943, os aliados deram o salto ao continente europeu e invadiram a Sicília desde onde penetraram na Itália continental. Tudo desmoronou no estado fascista. O rei da Itália, Victor Manuel, ordenou a prisão de Mussolini e assinou um armistício com os aliados.
O avanço aliado pelo sul obrigou os alemães a retrocederem para o norte... até que Hitler disse basta. Mussolini foi libertado por paraquedistas alemães e Hitler conseguiu parar os aliados na chamada linha Gustav, uma série de fortificações que iam do Tirreno ao Adriático a uns 100 quilômetros de Roma.
Estabilizada a frente italiana, os aliados estabeleceram pontos estratégicos para reabastecimento, e um deles foi o porto de Bari no Adriático. Desde aquele momento, a tranquila população de Bari tornou-se a base de operações aliadas, e a seu porto chegavam barcos diariamente com material de guerra, combustível, comida e material médico.
Apesar de que era um enclave vital, as medidas defensivas antiaéreas deixavam muito a desejar. Os alemães estavam na defensiva e a Luftwaffe em retirada. Às vezes ocorria uma ou outra incursão aérea esporádica diurna repelida sem maior problema. Nada preocupante. Ou isso criam os aliados. Até que chegou a noite de 2 de dezembro de 1943, quando uns 30 navios de carga e petroleiros esperavam sua vez para serem descarregados.
Aquelas incursões esporádicas de aviões alemães não pretendiam atacar o porto, senão reconhecer o terreno. E todos os relatórios que apresentaram aos seus superiores tinham a mesma conclusão: Bari não tinha defesas antiaéreas, os barcos se apinhavam no porto e, ademais, pela noite, descumprindo qualquer protocolo de segurança, se mantinham iluminados como um espetáculo pirotécnico no meio do deserto.
A noite do 2 de dezembro, em apenas meia hora, 105 bombardeiros alemães converteram o porto Bari no Pearl Harbor italiano. O porto se tornou um autêntico inferno: as bombas dos alemães, as explosões da munição dos celeiros, o rompimento de um oleoduto que provocou que o fogo se propagasse pelos berços e a superfície da água coberta por uma capa viscosa de petróleo derramado que cegava e afogava aos que estavam na água.
Ao todo, 16 barcos com 38.000 toneladas de carga foram totalmente destruídos e outros oito danificados. Entre eles o John Harvey, que diferente dos outros atracados no porto, com grande parte de sua carga convencional que era composta de armas e munições, tinha uma carga secreta mortal: carregava uma grande quantidade de gás mostarda líquido contido em garrafões empilhados no convés superior.
Uma carga tão secreta que no barco nem o capitão sabia de sua existência; só Thomas Richardson, o oficial de segurança de carga, e que os americanos enviaram no caso de Hitler decidisse utilizar armas químicas. Como Thomas não podia revelar sua existência e as autoridades portuárias também não conheciam seu conteúdo, já que se soubessem não teriam permitido a descarga, o barco não teve prioridade alguma e estava dois dias atracado no porto esperando sua vez.
O John Harvey foi repetidamente atingido e incendiado, queimando ferozmente até a munição explodir com uma grande explosão. Quando a poeira assentou, o gás mostarda líquido jazia na superfície do mar, misturando-se ao óleo e outros combustíveis usados pelos navios naufragados.
Em meio ao caos e confusão que se seguiu à partida dos bombardeiros alemães, todos os navios que pudessem se mover receberam ordens de resgatar os marinheiros na água e aqueles que ainda estavam presos a bordo de navios em chamas. Tornou-se aparente que alguns dos que estavam na água ficaram tão gravemente feridos que não conseguiam subir a bordo e vários oficiais e tripulações tiraram as roupas para ajudar os que estavam na água a embarcar. Ledo engano: também ficaram impregnados com a mistura letal do gás acre que pairava sobre a água.
Quando o pessoal médico atendia aos feridos, se surpreenderam porque, além das feridas próprias de um bombardeio, os feridos tinham queimaduras nos olhos e bolhas na pele, mas como ninguém informou do gás mostarda não puderam dar o tratamento adequado. De modo que, muitos que, aparentemente, não tinham lesões graves, permaneceram com as roupas impregnadas naquela mistura letal.
As erupções na pele deram passo às complicações respiratórias e à morte, e inclusive civis que não estavam no porto começaram a ter os primeiros sintomas. Os médicos começaram a suspeitar que podia ter relação com algum tipo de agente químico e imediatamente culparam os alemães, que deviam ter lançado um ataque com armas químicas.
O alto comando aliado finalmente enviou o tenente coronel Stewart Alexander, um especialista em tratamento contra armas químicas, que confirmou que o responsável era o gás mostarda e, depois de uma investigação dos restos das bombas do porto, que não tinham sido os alemães. Dois meses depois, em fevereiro de 1944, os americanos tiveram que admitir o incidente e garantir que não se contemplava o começo de uma guerra química. Mas o dano já estava feito.
Além dos mortos pelo bombardeio, o relatório da investigação concluiu que as bombas químicas cobraram a vida de 628 pessoas, mas alguns historiadores indicam que foi pelo menos o triplo disso porque muitos marinheiros foram enterrados no mar com as explosões. Entre o pessoal militar aliado e da marinha mercante muitos poderiam ter sido salvos se os médicos tivessem a informação adequada desde o primeiro momento.
Nestes números não estão incluídas as vítimas civis que estiveram expostas ao agente químico, já que, depois do ataque, ocorreu um êxodo em massa de civis que abandonou Bari. Mas alguns dias depois mais de 800 italianos deram entrada em hospitais com os sintomas decorrentes do uso do gás mostarda.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, os efeitos do bombardeio a Bari foram notadas nas seguintes gerações. O gás mostarda liberado na cidade permaneceu durante décadas, adoecendo muitas pessoas que foram morrendo com a passagem do tempo ou que tinham sequelas gravíssimas, sem nenhuma explicação, porque os americanos classificaram os documentos da investigação da tragédia como ultrassecreto.
A investigação do tenente coronel Stewart Alexander também revelou outra coisa: a mostarda nitrogenada atacou os glóbulos brancos; os primeiros a desaparecer foram os glóbulos brancos nos órgãos linfáticos (isto é, linfócitos). Suas descobertas adicionaram evidências críticas ao que outros cientistas estavam investigando no laboratório: a possibilidade de que os efeitos tóxicos da mostarda de nitrogênio podiam ser aproveitados para atingir as células cancerosas: glóbulos brancos correndo soltos no corpo e invadindo tecidos saudáveis. Embora os Aliados tenham tentado selar os registros do evento em Bari, Alexander conseguiu divulgar suas descobertas antes de desaparecer de cena, optando pelo consultório médico particular após a guerra.
Para qualquer paciente com câncer que experimentou os horríveis efeitos colaterais da quimioterapia, pode não ser surpreendente saber que as drogas anticâncer têm suas origens nos agentes químicos tóxicos projetados para a guerra. A descoberta revolucionou o tratamento do câncer, mas a que preço? Esta história de triunfo científico é totalmente obscurecida por uma história paralela de encobrimentos oficiais e atoleiros éticos.
As vítimas de Bari daquele momento e as que se seguiram foram inescrupulosamente prejudicadas por uma conspiração de silêncio e ofuscação entre as autoridades americanas e britânicas, até Churchill e Dwight Eisenhower. Com a intenção de manter em segredo os estoques de armas químicas -e os danos acidentais que elas causaram-, esses oficiais não admitiram a existência de armas químicas Aliadas ou as descobertas do Dr. Stewart. O encobrimento continuou muito depois do fim da guerra.
De fato, Washington tornou alguns relatórios públicos apenas em 1967 e até 1986, isto é, mais de quarenta anos depois, Bari não foi desinfetada totalmente do gás mostarda. Nesse mesmo ano os Estados Unidos tiveram que pagar indenizações às vítimas por sua negligência.
Guerras promovem palcos terríveis onde questões morais preocupantes são deixadas de lado no interesse de vencer um inimigo que precisava ser vencido. Esta história trágica é outro lembrete de quão frios foram os cálculos da Segunda Guerra Mundial e de quantos foram sacrificados na busca de uma vitória para a qual qualquer alternativa era possível.
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