Por isso nem sequer existe um termo médico para expressar o ato de expulsar gases ou ventosidades: o excesso de gás no aparelho digestivo, conquanto é conhecido como flatulência ou flato, quando é liberado pelo ânus é denominado simplesmente ventosidade ou peido, palavra popular desde os tempos de Chaucer, autor dos Contos da Cantuária.
Pese que seja onipresente e inclusive o imperador Claudio tenha promulgado o decreto "Flatum crepitum que ventris in convivio mettendis", para estabelecer como os comensais deviam expelir os peidos durante as refeições, a comunidade médica trata de passar de fininho pelo tema objeto de censura e piadinhas. Contudo, alguém deve arregaçar as mangas e analisar o peido, sacrificando-se pelos demais. Pois então vamos lá.
Uma pessoa saudável expulsa flatulências uma vez a cada hora em média, dependendo do que tenha ingerido ou dos níveis de estresse, produzindo até dois litros de gases. A maioria deles são inodoros, felizmente. E o ruído X9 do peido só acontece por causa da vibração da abertura anal, variando em função da contração que seja necessária do músculo do esfíncter e a velocidade à que se expele o gás, bem como outros fatores como a umidade e a gordura corporal.
Apesar de que tudo isto possa convidar à gargalhada -e de fato eu mesmo estou escrevendo estas linhas como um ritual de travessuras infantis-, nossos peidos podem constituir uma forma como outra qualquer de conhecer os segredos da química, biometria, anatomia, digestão e qualquer outra vertente científica. Talvez seja uma forma um tanto licenciosa de fazê-lo, mas não dizem que a ciência deve ser atrevida e transitar nos caminhos que ninguém transitou ainda?
Bem sabia um dos primeiros cientistas que se aproximou do peido, Benjamin Franklin, que analisou os componentes da
alimentação e sua influência no cheiro das flatulências em seu ensaio "Peidando com louvor" ("Fart Proudly", 1781). Nele, reclamava alguma forma de peidar em público sem que fosse algo profundamente incômodo. As cópias do ensaio foram impressas pelo próprio Franklin em sua imprensa em Passy. A seguir, distribuiu o ensaio a amigos e colegas, entre eles Joseph Priestley, químico famoso por seu trabalho sobre os gases.
Michael Levitt, o Senhor dos Peidos
No mesmo caminho de Franklin, temos possivelmente o maior especialistas mundial em flatulências, o doutor Michael David Levitt, gastroenterologista da Universidade de Minnesota. Entre outras metas, Levitt é o responsável por identificar, graças a um cromatógrafo de gases, os três gases de enxofre responsáveis pelo cheiro dos peidos, e também é o inventor da roupa íntima sela-peidos, fabricada em filme de poliéster como a roupa íntima que esperaríamos ver em um capítulo clássico de Star Trek. O segredo desta cueca está no carvão ativado, como bem sabemos utilizado nos trajes herméticos de astronautas da NASA, que dispõem de um filtro deste material para o fornecimento de ar circulante.
Levitt também demonstrou que o flato das mulheres tem uma maior concentração de ácido sulfídrico que o dos homens, o que provoca mais fedor. Pelo contrário, os homens desprendem um maior volume de gás em cada ventosidade, o que equilibra o ponteiro da balança, em uma sorte de paridade odorífera. Mas aqueles peidos que, em geral, ardem os olhos, quase sempre são obras femininas. Contudo, finalmente há também pessoas mais propensas a que sua flora interna seja colonizada por maiores concentrações de bactérias produtoras de enxofre.
As fezes humanas são compostas, essencialmente, de água, fibra (a maior parte da massa), algumas gorduras, mucosa, pigmentos biliares (os responsáveis por sua cor marrom escuro), células mortas, bactérias que perderam sua aderência ao colón, uns 1.200 tipos diferentes de vírus e alguns gases. Geralmente, o cheiro não escapa dos excrementos armazenados no cólon, exceto se soltamos um peido tipo traque (aquele que arde o fiofó), que é a liberação de dióxido de carbono, hidrogênio, nitrogênio e metano. Pese que os movimentos peristálticos que expulsam as fezes são os mesmos que expulsam as ventosidades, as ricas terminações nervosas do reto aprendem a distinguir o que se avizinha; salvo nos casos em que as deposições são muito fluídas, produzindo uma defecação acidental, o conhecido peido pesado (vai ser só um peidinho!).
A divulgadora Mary Roach entrevistou pessoalmente Levitt em busca de respostas a respeito do funcionamento de nosso sistema digestivo para escrever seu livro "Glup", e conta outras façanhas do pesquisador que nos revelam quão frutífero pode chegar a ser um simples peido:
- "Ele inventou o teste de hidrogênio espirado, que surgiu não como uma técnica de avaliação das flatulências, senão para diagnosticar a má absorção de carboidratos por parte do intestino delgado; desacreditando uma modinha dietética baseada em comidas feitas com carboidratos não absorvíveis e demonstrando que o movimento ondulante das lanosidades intestinais é a chave para a agitação o intestino e para a absorção saudável dos nutrientes."
Não obstante não é essa a única vocação trabalhista proporcionadas pelos peidos, no âmbito da medicina tradicional chinesa existe uma profissão chamada "wen pishi" que, basicamente, consiste em se converter em um especialista em detectar doenças gastrintestinais através do cheiro dos peidos do paciente. De qualquer forma, temo, contudo, que esta técnica é mais adiáfora e sem sentido que a homeopatia.
O RG do Peido
Não podemos usar os cheiros para identificar doenças, mas sim para adivinhar quem, em particular, deu uma bufada, porque cada peido tem um cheiro diferente. De fato, os peidos poderiam nos definir de tal modo como indivíduos, assim como os especialistas em biometria sempre pretenderam usar para nos identificar. O peido pode ser tão preciso quanto nossa impressão digital, tal e qual afirmou Alan Kligerman, ganhador de um IgNobel de Medicina de 1991 por inventar o Beano, um suplemento dietético de base enzimática que contribui a evitar as flatulências. Não é tão estranho se levarmos em conta que, mediante um sequenciamento de DNA dos alimentos achados em "toroços" fossilizados, pode ser determinado a dieta do responsável por tal cocô.
Apesar da contribuição de agentes menores como o metilmercaptano, o cheiro de um peido é definido pela concentração de três gases: o ácido sulfídrico (cheira ovos podres), metanotiol (cheira verduras em decomposição) e sulfato de dimetilo (cheiro adoçicado enjoativo). E os primeiros narizes eletrônicos para detectar os níveis da cada um destes elementos já estão sendo desenvolvidos. Como o detector de flatulências dos engenheiros informáticos Robert Clain e Miguel Salgas, da Universidade de Cornell, que é formado por um monitor sensitivo de ácido sulfídrico, um termômetro e um microfone. Sim, ao que parece, a temperatura e o ruído do pum também são relevantes, entre outras coisas porque quanto maior é a temperatura de uma ventosidade, maior é sua velocidade de dispersão. Por enquanto, o aparelho vem chamando a atenção dos veterinários, porque assim poderia ser medido a saúde do gado confinado.
O cheiro da bufa também pode servir para localizar um cadáver. Porque, inclusive três horas após a morte, os seres humanos podemos expelir matéria fecal e flatulências resultantes da contração muscular e do inchaço do cadáver prévio ao rigor mortis.
A equipe criadora do "fart intensity detector" da Universidade de Cornell.
Peido letal
Inalar uma ventosidade pode ser profundamente repugnante, mas não letal, apesar de que a composição química de uma flatulência inclua certa concentração de ácido sulfídrico. Felizmente, a concentração deste gás com cheiro de ovo podre é apenas entre 1 e 3 partes por milhão em um peido humano. Para que provoque asfixia e paralisia respiratória são requeridas umas 1.000 partes por milhão, a concentração presente em tanques de águas residuais.
Sem temor, podemos emitir flatulências debaixo do edredom depois de ter comido brócolis com batata doce e ovo cozido, apesar de que no século XIX existissem alguns galenos que acreditavam o contrário, adjudicando a determinados peidos o status de veneno, tal e qual explica James Whorton em "Inner Hygiene". De fato, grande parte do ácido sulfídrico é absorvido através do cólon, de modo que o peidorreiro pode compartilhar sua arte sem medo na cama com outra pessoa.
Contudo, somos grandes detectores odoríferos de flatulências, pois dispomos de 350 tipos de receptores diferentes no nariz para avisar do perigo ou avaliar a conveniência de um alimento, até ao ponto de que podemos distinguir com facilidade dois cheiros que diferem exclusivamente de apenas um componente molecular, tal e qual sugeriu Jay Gottfried, um neurocientista da Northwestern University.
Os cheiros que mais despertam nossos alarmes são, na opinião do microbiólogo Mel Rosenberg, da Universidade de Tel Aviv, a cadaverina (cheiro de cadáveres em decomposição), putrescina (cheiro de carne podre), ácido isovalérico (chulé), sulfureto de hidrogênio (cheiro e ovos podres) e metilmercaptano e escatol (cheiro das fezes e das flatulências); ainda que este último, em baixas concentrações, pode ser encontrado, paradoxalmente, em algumas flores, e portanto é usado como fragrância para muitos perfumes. E assim como assinala Jennifer Ackerman em seu livro "Sexo dormir comer beber sonhar, um dia na vida do seu corpo": O nariz humano é muito sensível ao escatol, mas nem sempre acha que é nauseante. De fato, diz-se que o composto é utilizado em pequenas quantidades para fazer sorvete de baunilha.
As ventosidades sim podem ser perigosas com independência de seu cheiro. Se aproximamos a chama de um isqueiro de nossas nádegas e ejetamos um bufão descobriremos que este é inflamável, e por um segundo nos sentiremos como se estivéssemos providos de um lança-chamas. Até ao ponto de que alguns cientistas sustentam que os casos de combustão espontânea (pessoas que acabam envolvidas em chamas sem razão aparente), que às vezes aparecem na mídia, seriam fruto de uma ventosidade que arde depois de entrar em contato com a eletricidade estática.
A alimentação e o peido
Em função de nossa alimentação, nossas flatulências desprenderão um cheiro em particular, e também acontecerão em um número determinado. Por exemplo, o maior responsável por flatulências verdadeiramente fedorentas é a carne vermelha, porque a proteína em decomposição desprende um estoura-tripas repugnante. Tal e qual assinala Mary Roach:
- "O hálito da manhã é o ácido sulfídrico liberado pela bactéria que consome as células mortas da língua após passarmos oito horas respirando pela boca". Isto é, que o mesmo agente que torna nossas flatulências hediondas é o que torna também nosso bafo vomitável.
Também são responsáveis pelo mau cheiro do peido os alimentos que contêm sulfitos, uma forma de sais do ácido sulfuroso que são acrescentados como conservantes em passas e outras frutas secas, assim como na cerveja, vinho, sidra de maçã e muitos outros alimentos e bebidas. Quando as ventosidades são particularmente fedorentas, também podem ser sintoma de uma sobre abundância de bactérias no intestino delgado.
Em um estudo publicado em 2013 por pesquisadores espanhóis na revista GUT, juntaram amostras fecais e analisaram o DNA das bactérias para determinar como a dieta influía na quantidade de ventosidades que expulsamos. Conquanto as pessoas saudáveis têm uma composição de bactérias muito similar, isto é, 50% de firmicutes, 46% de bacteroidetes, 2,3% de proteobactérias e 1,3% de actinobactérias, uma dieta que incite à flatulência acaba modificando a composição microbiana do cólon, reduzindo a diversidade. Ao que parece, a bactéria Bacteroides fragilis determina o número e freqüência de flatulências, e a bactéria Bilophila wadsworthia, o volume de gás que é expulso.
Contudo, o número de flatulências que emitimos também depende da altura em que vivemos, pois ao nível do mar uma pessoa normal emite umas 15,1 ventosidades a cada vinte e quatro horas; mas a 7.000 metros de altura o número sobre até 129,6 rajadas gasosas. A altura influi tanto na regularidade dos peidos que inclusive peidamos mais enquanto voamos em um avião, ainda que desta vez como resultado das mudanças de pressão na cabine, de modo que não é boa ideia comer uma feijoada e voar. Foi o que descobriu uma equipe de gastroenterologistas dinamarqueses e britânicos, que publicaram seu estudo no New Zealand Medical Journal. Com base no estudo, propuseram, para combater o excesso de gás, reduzir drasticamente a fibra do menu servido a bordo das aeronaves.
Se as flatulências acontecem em excesso, então também podem ser um sintoma de intolerância à lactose ou de alergia alimentícia, e também, tal e qual listam Joan Liebmann-Smith e Jacqueline Nardi Egan em "Escute seu corpo":
- "Importantes transtornos gastrintestinais, como cálculos biliares, síndrome do cólon irritável ou doença inflamatória do intestino. O excesso de flatulência pode delatar algumas vezes um câncer de esôfago, de cólon ou de reto". O termo médico para denominar o excesso de flatulência é meteorismo, um problema que sofria inadvertidamente Aldolf Hitler, descoberto depois de publicado uma série de documentos clínicos do ditador que foram leiloados em meados de 2012 na Alexander Historial Auctions. Para combater a doença, ele ingeria um total de vinte e oito medicamentos diferentes.
E se pertence ao sexo feminino, além dos peidos no sentido clássico do termo, também podem ser expulsos gases através da vagina, ainda que nesta ocasião não se trata de uma liberação de gases procedente do intestino e fruto da fermentação de bactérias, e portanto não tem nenhum cheiro. Isto é conhecido como flato vaginal e é freqüente nas relações sexuais. No entanto, ainda que sejam casos muito raros, nalguma ocasião o peido vaginal também pode cheirar como um peido anal. Quando isso acontece estaremos ante um problema de fístula rectovaginal, que implica um rasgo entre a vagina e o cólon. Em geral isso é o resultado de doenças como a de Crohn ou cirurgias, entre outras causas. Mas isso já faz parte de outro universo embaraçoso, e o melhor é postergá-lo até outro artigo.
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Comentários
Adoro peixinho assado e depois o arome de peido cozido, recomendo acenderem os peidos com isqueiro ou entao quando estao na praia around the campfire. belas cores tipo fogo de artificio. recomendo polvo para cores azuis e caril para cor vermelha.
Putz.
Tenso...
:-/
Brazuka, tu que foi preso e solto ou tu prendeu um peido e depois soltou?
:P
Como sempre mais um post muito interessante, parabéns!
Brazuca – Nos poupe de ler tamanha bobagem, depois de uma declaração dessa, vc deveria ser decapitado.
E quem falou em religião? Vc deve tá drogado?
Este artigo tinha mais de mil likes e inexplicavelmente o Facebook zerou o contador, como já fez em outros posts, com o intuito de me fazer comprar publicidade.
Excelente post. :lol: :lol:
Excelente matéria, ensina ao mesmo tempo que descontrai.
E falando em descontrair:
-Você sabe o que é um arroto?
-Não
-Um peido que subiu na vida.
"ejetamos um bufão" AHhuahuahAUuahUAHUAhuAhUAhUAhaUhUAhahuahuahaUAhau
Brazuka, que revolta é essa?
Admin e seus posts flatulentos.