Sempre tem este "mas" designativo de oposição para justificar maldades. As liberdades de religião (e de não) e de expressão são consideradas por muitos como direitos humanos fundamentais. Qual deve ser preeminente então, o que deve pesar mais, respeito à religião ou o direito de opinião?A resposta, a princípio embaçada, é bastante óbvia: a escolha individual (e pessoal) inalienável do direito a opinião, ironicamente uma classe de Ouroboros.
Pessoalmente eu não debocho da crença de ninguém, mas não é necessário muito esforço para descobrir que a maioria dos religiosos não respeitam a descrença e a religião alheia. Deveria ser uma via de mão dupla certo? Mas não é, e no caso do ataque ao Charlie Hedbo, a impressão desagradável e incômoda que tive foi que algumas pessoas, inclusive amigos, se sentiram realizadas pelas mortes. Só faltou mesmo que explicitassem: - "Bem feito! Quem mandou se meter com a religião!"
Entretanto, quando as pessoas apóiam, mesmo que indiretamente, atos de muçulmanos fanáticos assassinos, elas não estão indo exatamente contra aquilo que a sua religião prega? E esta hipocrisia tem destaques em quaisquer lados das trincheiras ideológicas e religiosas. Em uma recente entrevista, o caricaturista Carlos Latuff oferece uma interessante reflexão sobre a complicada condição em que nos encontramos, defendendo a liberdade de expressão no meio de um acrisolado conflito religioso:
"É uma discussão perpétua, porque o que é liberdade de expressão e o que é discurso de ódio? Por que algumas pessoas são protegidas pela liberdade de expressão e outras não? Por que podemos debochar de certas coisas mas não de outras? Negar o holocausto, por exemplo, deveria ser incluído como liberdade de expressão ou agressão racial? Há que ver, por exemplo, o tratamento que os meios ocidentais dão às caricaturas de Maomé e as caricaturas do holocausto."
Negar o holocausto é proibido na França. Isto é uma amostra de respeito aos judeus, para quem o tema é especialmente sensível. O Islã condena a idolatria e para muitos muçulmanos as imagens de Maomé são a mais ofensiva heresia. Podemos dizer que os muçulmanos são especialmente sensíveis às representações visuais de seu profeta, mas isto é algo que a sociedade francesa e a sociedade ocidental em geral não respeitam da mesma forma. Mas deveria respeitar?
Este duplo padrão parece também ter existido dentro do próprio Charlie Hebdo. Em 2009 a revista despediu o caricaturista Maurice Sinet, que trabalhou ali por 20 anos, por troçar da relação entre o filho de Nikolas Sarkozy e uma mulher judia endinheirada, sugerindo que esta relação o ajudaria a escalar a sociedade. Ele foi acusado de "incitar ódio racial" e a direção editorial do Charlie Hebdo pediu a Sinet que se desculpasse. Ele negou-se e foi despedido. Depois ganhou um processo contra o Charlie Hebdo e recebeu 40 mil euros.
Anteriormente o Charlie Hebdo foi demandado por organizações islâmicas na França por suas caricaturas e negou-se a pedir desculpa. Conquanto também seja verdade que o mesmo ocorreu quando foi demandado por organizações católicas -algo que ocorreu um maior número de vezes-.
Sobre o caso de Sinet, dizem que a causa da demissão foi política e não religiosa, cedendo ante a pressão do poder de Sarkozy. Talvez isto seja verdade, mas o semanário debochou da elite política francesa muitas vezes antes. E em todo caso, o princípio fundamental de seu discurso era sua negativa a toda censura -e não à auto-censura apenas em temas políticos comprometedores ou anti-semitas-.
Como assinala Henry Roussel, um dos fundadores do Charlie Hebdo, o editor chefe Stephane Charbonnier tinha tomado partido e estava envolvido em uma desafiante briguinha de provocações com os extremistas islâmicos que já tinham bombardeado seus escritórios antes do brutal ataque deste mês. Olivier Cyran, antigo jornalista do Charlie Hebdo, disse em 2013 que "uma neurose islamofóbica apoderou-se pouco a pouco" da revista depois do 11-S, que efetivamente respaldou os ataques a membros de uma religião minoritária sem influência nos corredores do poder.
Para explicar o caso de Sinet seguramente deveríamos recorrer ao antecedente do "affaire Dreyfus", o famoso caso do capitão do Exército judeu que foi erroneamente acusado de espionar no século 19, que simboliza o anti-semitismo da sociedade, que devia ser erradicado depois. Como no caso da negação do Holocausto, é a história que faz que a sociedade francesa tenha um especial tratativa ante o que pode ser considerado como ofensivo ou racista para a população judia.
A história da população muçulmana, também é muito fresca na memória em relação as invasões militares que seus países sofreram nos últimos anos e, como explicamos anteriormente, a história do Islã faz com que seus membros sejam especialmente sensíveis à iconografia de Maomé. Mas esta história não está incluída dentro da história compartilhada, para nós é uma bobagem não aceita como parte da realidade da sociedade ocidental. Não é considerado necessário ter uma atenção especial à suscetibilidade islâmica. Essa é a diferença.
Mehdi Hasan, editor muçulmano do Huffington Post na Inglaterra, escreve sobre este padrão duplo:
- "Em sua publicação saem desenhos que debocham, por exemplo, do holocausto? Não? E caricaturas sobre as vítimas do 11-S caindo das torres gêmeas? Não creio (e me alegro de que assim seja)".
Medhi convida a reflexão de imaginarmos o que teria acontecido se uma hipotética pessoa fosse à marcha da unidade de 11 de janeiro em Paris com uma cartaz em que se lesse "Je suis Chérif", o nome de um dos assassinos de Charlie Hebdo.
- "Como reagiria a multidão? Veriam este indivíduo solitário como um herói que defende a liberdade e a livre expressão? Ou ficariam profundamente ofendidos?".
Como podemos ver, há polêmica de sobra, mas o que não deve sobrar e nem ser minimamente questionada é a forma com a qual resolvemos nossas diferenças: discutindo, confrontando ideias, inclusive trocando insultos, mas não matando o opoente porque ele não comunga com minhas convicções.
Dizer que as pessoas que morreram no Charles Hedbo "tiveram o que procuraram", justificando um ato execrável e ominoso de terrorismo, pode revelar muito sobre o fundamentalismo oculto atrás de suas crenças, nos permitindo inferir que, não somente o islã, senão que qualquer religião é potencialmente uma ideologia justificadora de violência.
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Comentários
Taz tempo tinha visto o jornal e nos lugares onde a C.H. tinha zuado suas religiões, tinhamum muro escrito"Je suis Mohamed".
Essa não é a pior coisa, a pior é ver como os hipócritas de plantão reagiram perante tal situação. Eu vi no meu face esses dias uma pessoa postando a mensagem "Je suis Hebdo" sem saber toda a situação, só sabiam o que passava exaustivamente na tv e internet, dois dias depois dessa tragédia, onde a mesma pessoa viu uma charge ridicularizando o cristianismo, escreveu isso "Assim não sou mais Charlie Hebdo". Ou seja, quando a crença das outras pessoas era ridicularizada estava emocionado com os ocorridos, mas quando mexeu com sua religião ficou "ofendido" (além do fato que apareceu outras pessoas comentando bem feito pelos cartunistas terem morrido por ridicularizarem o cristianismo). É como dizem, pimenta no cu dos outros é refresco.
Lembando que nenhum direito, nem mesmo os fundamentais, é absoluto.
Ademais, todo direito traz junto consigo uma obrigação.
Aahhh, vá a merda....
Tem que se fud** !!!
:-/
vixe... esse treco vai longe ainda!
Eu não infantilizo o humor do C.H. A ideia não é troçar, simplesmente. Ninguém pode reduzir as investidas contra a religião islâmica como fruto da liberdade de expressão. Dizer que eles não têm responsabilidade sobre sobre o que lhes ocorreu é o mesmo que tratá-los como crianças e, ao mesmo tempo corroborar a postura anti-islâmica que assumiram deliberadamente. Tento imaginar se, ao invés de terem assassinado os próprios cartunistas, os extremistas decidissem explodir um local repleto de inocentes. Os cartunistas dariam de ombros? Diriam que não têm nada a ver com o fato, que só estão fazendo o que lhes cabe fazer? É como numa cena execrável que vi há algum tempo: um menino empinava pipa com cortante na linha bem no canteiro de uma rodovia interestadual. Um dia antes, um motociclista havia sido degolado devido a mesma prática. "Só quero empinar meu pipa. Não fui eu que matei", respondeu o garoto quando questionado. Então, é assim?
E o que podemos dizer especificamente do caso do atentado a esse jornal:
Que as charges dos humoristas são questionáveis, mas o terrorismo é inadmissível ou, que o terrorismo é inadmissível, mas as charges dos humoristas são questionáveis?.
O que dizemos depois do "mas" não tem nenhum "porém".
A realidade é que fundamentalistas de qualquer coisa, de qualquer ideologia, não respeitam a liberdade de quem pensa diferente deles.
Não consideram um outro ponto de vista, para eles só há um ponto de vista. Cego. O deles.
Na Arábia Saudita dizem que (não houve confirmação por parte da embaixada) decretaram pena de morte para quem carregar bíblias para dentro do país.
Não duvido que seja de fato visto que fora do país também querem impor esse fundamentalismo.
Já fazia muito, mas muito tempo que esse pasquim estava procurando sarna pra se coçar. Achou. O livre direito de expressão visa (ou deveria) emitir opinião e não sair ofendendo a todos (menos os judeus) por atacado.
Queriam dizer que a Europa foi tomada pelo povo islâmico? Que os imigrantes estão tomando de assalto Paris e boa parte da França? Fizessem isso com inteligencia. No momento em que passaram a atacar diretamente as crenças deveriam também ter comprado coletes a prova de balas.
E como esta escrito nos portões do inferno; "As vezes dá merda!"
Deu!
Quando chegou o post, minha opinião foi quase a do Papa Francisco, eu faleique se devia saber o risco, por exemplo vc é de um time que venceu de 5 a0 do corintians, e zoa, vc sabe que vai ter confusão e pode sair dela sangrando.Bem se vc zoa a mãe de alguém vc consegue um soco, pode ser injusto pq era melhor rebater xingando,isso é o caso da revista, na minha opinião nenhum é inocente.
O ser humano é hipócrita mesmo. Liberdade de expressão na religião dos outros é refresco.Sou ateu e respeito a escolha religiosa das pessoas, mas os crentes , em sua maioria, não respeitam o minha falta de fé.
Mudando um pouco de música mas na mesma nota eu já vi, tem algum tempo, pessoas usando uma camisa com a frase 100% NEGRO. E se eu usasse uma camisa com a frase 100% BRANCO?