Alguém da Flórida que tenha construído uma balsa rudimentar para fugir para Cuba? Algum sul-coreano que tenha tentado chegar a Pequim cruzando a do Norte? Algum alemão ocidental que tentou alcançar Berlim Oriental? Ninguém! A explicação é simples: Porque o comunismo, para além do que dizem os livros teóricos, para além do que pensam os utopistas, nunca foi mais do que a antítese da liberdade. Já o inverso, temos várias histórias, como a de um mecânico e um pedreiro, ambos na mesma situação desesperadora, que queriam fugir da Alemanha socialista. |
Com a Alemanha Oriental e o último dardo envenenado do nazismo, o Muro de Berlim, de fundo como a fronteira inexorável que os separava da liberdade, dois homens, o pedreiro Günter Wetzel e seu amigo mecânico Peter Strelzyk, bolaram um plano para fugir daquele inferno da maneira mais épica possível.
Bem antes da meia-noite de 15 de setembro, um pequeno sedã atravessava a noite pelas estradas estreitas que levavam para as zonas mais altas e arborizadas da cidade de Berlim. Em um certo momento o carro parou e dele saíram os dois amigos, Günter segurando uma lanterna, enquanto Peter jogava para o alto vários fios de lã sobre a noite gélida e com fortes ventos daquele dia. Aqueles fios, todos juntos, iam se converter no veículo mais surpreendente das muitas tentativas de fuga que aconteceram na Alemanha.
O mecânico e o pedreiro
Muro de Berlim.
Se retrocedêssemos com uma máquina do tempo algumas horas antes, a cena passaria à casa de Günter, com o homem encurvado sobre uma velha máquina de costurar acionada por motor, trabalhando desesperadamente para completar seu projeto secreto. Em realidade, para começar esta história desde o princípio teria que retroceder bem mais. Exatamente um ano e meio antes, momento em que ambos começaram a bolar um plano para fugir da Alemanha Oriental.
No início de 1978 começaram a debater sobre a possibilidade de sair da Alemanha Oriental. Nada novo realmente, a República Democrática Alemã controlada pelos soviéticos não era especialmente nada democrática.
Mapa de Berlim Oeste e Leste, os cruzamentos fronteiriços e as redes de metrô.
Eram tempos especialmente duros para a maioria dos alemães. Calcula-se que naqueles dias, um da cada dez cidadãos do leste havia sido subornado para espiar em segredo seus amigos, familiares e vizinhos, o que significava que era impossível saber em quem você podia confiar. Muitos tinham profissões atribuídas, as viagens ao estrangeiro eram restritas, e todo aquele que alçasse a voz, recebia castigos que iam desde o desemprego até a prisão ou inclusive a tortura. Isto sem contar com a pobreza generalizada e condições de vida, em geral, paupérrimas.
Ao contrário, na calçada da frente tinham bem mais que celebrar. A Alemanha Ocidental apoiou-se no famoso Plano Marshall que devia impulsionar a recuperação econômica, e o otimismo, ou ao menos as notícias que chegavam do outro lado dos muros do leste, soava a música celestial.
Ali, a poucos quilômetros ao norte da fronteira com a Alemanha Ocidental, encontrava-se a cidade de Pössneck. O problema é que chegar ali era pouco menos que uma utopia. O Muro de Berlim tinha fama de impenetrável, com as chamadas "zonas da morte", espaços cheios de arame farpado, fileiras de minas terrestres, redes de armadilhas, pistolas e metralhadoras preparadas para atirar na cabeça, peito ou pernas, torres de guardas e muros altos.
Cartaz anuncia o financiamento, através do Plano Marshall, de parte das obras de reconstrução de Alemanha Ocidental.
Ademais, e se isto já não fosse suficiente, qualquer pessoa que sobrevivesse e fosse flagrada tentando escapar para o oeste de Berlim ou para o oeste da Alemanha, era castigada de forma severa, às vezes executada ou simplesmente presa pelo resto da vida. De fato, muitos jornais celebravam quando as tentativas de fuga eram frustradas.
Sob este clima, um dia aconteceu o estopim que deu lugar a toda a história. Os Strelzyks e os Wetzels estavam na casa de um casal amigo quando de repente alguém bateu à porta. Era a polícia secreta da Alemanha Oriental explicando que o filho adolescente do casal da casa fora morto a tiros enquanto tentava cruzar a fronteira. Ato seguido, a polícia levou o casal e nunca mais ninguém soube nada deles. Peter e Günter decidiram que deviam fazer algo.
Alguns meses depois, a cunhada de Günter Wetzel visitou seus parentes da Alemanha Oriental e trouxe um jornal que continha um artigo sobre um espetáculo de balões aerostáticos. Peter e Günter olharam-se e pensaram a mesma coisa, o aparelho poderia ser uma forma viável de fugir. Não tinham a mais remota ideia de como construir um, mas poderiam fazer de forma secreta sem que ninguém se desse conta. O balão seria seu passaporte a Alemanha Ocidental.
Depois de consultarem suas famílias puseram mãos à obra. Primeiro consultaram fotografias de balões aerostáticos em ação e decidiram aprender tudo o que podiam sobre o assunto. Precisavam de muita lona resistente e leve.
A mulher de Günter comprou perto de 1.000 metros quadrados de um material para forrar couro. Para evitar suspeitas explicou na loja que estava fazendo toldos para um clube de camping com algumas amigas. Enquanto isso, Günter dedicou-se a testar com a forma de cortar a lona em formas tais que o balão se manteria bem em três dimensões, obviamente, com uma quantidade de tecido extra desperdiçado.
Para isso empregou uma máquina de costurar manual antiga, utilizando um tipo de fio resistente que normalmente é usado para costurar couro em um padrão de ponto duplo muito forte. Por sua vez, Peter adquiriu um tanque de propano e colocou-lhe um encanamento e uma válvula para dirigir as chamas e controlar a quantidade de gás que recebia (algo bem como um isqueiro caseiro gigante).
Recriação do balão no Museum der Bayerischen Geschichte
Por último, Peter e Günter precisavam de um cesto onde fugir. Para isso, soldaram uma placa de aço e mastros, depois perfuraram buracos a cinco alturas diferentes nos mastros e penduraram varais através deles como corrimões. Finalmente ligaram a canastra à "capa" com cordas de nylon ao longo de cada uma de suas quarenta e oito costuras verticais.
Quando construíram uma primeira versão e testaram. O balão nem inflou, e assim compreenderam que devia ser suspenso para que o aumento de ar quente ajudasse a inflar a envoltura. Isso sem contar com o fato que notaram que havia muito ar vazando através das costuras, problema que foi resolvido acrescentando um selante químico à parte externa do balão, o que também somou algo de peso, mas reduziu as fugas.
Fotograma de "Night Crossing"
Günter encontrou alguns livros de engenharia e física que o ajudaram a determinar quanto espaço ocuparia o ar quente e daí que quantidade precisaria para levantar voo. Estabeleceu que o balão precisaria ser maior do que tinham pensado: ao redor de dois mil metros cúbicos. Com esta ideia, Peter e Günter viajaram à cidade de Leipzig para comprar mais lona. Compraram de um tipo especial, algo mais de 1.000 metros quadrados, e disseram que estavam fazendo velas para um clube náutico.
O balão do Museum der Bayerischen Geschichte.
Günter regressou a sua máquina de costura na sua casa, mas desta vez com um detalhe que aumentou consideravelmente o ritmo de trabalho: ligaram um motor à máquina de costura, de forma que toda a capa exterior do balão foi feita em duas semanas.
Voltaram a testar o balão, mas inclusive com as modificações, seguia sem inflar. Günter pensou que seria necessário um ventilador para dirigir o ar diretamente para dentro do balão. Desenhou um personalizado com um motor de motocicleta ligado a um sistema de escapamento de um carro, e os testes foram bem sucedidos desta vez.
No entanto, apareceu um novo problema: o gás no fundo do tanque estava-se arrefecendo e fazendo que toda a operação fosse muito lenta. Os testes mostraram que, tal como estava configurado, o queimador não poderia manter o balão inflado durante o tempo necessário para a rota que tinham planejado.
A polícia encontrou o protótipo de Günter.
Os dois amigos deram um tempo, talvez porque, após tudo, não era tão boa ideia se arriscar a fracassar e pôr a vida de suas famílias em perigo. Durante os seguintes meses, Günter testou um protótipo próprio, mas foi um fracasso fragoroso. O balão acabou caindo e o pedreiro fugiu enquanto vários guardas fronteiriços corriam atrás dele.
Vários meses depois, com energias renovadas, ambos os amigos retomaram o plano de fuga. Günter foi a seu médico e disse ter problemas estomacais para deixar o trabalho por uma temporada e dedicar o maior tempo possível ao balão. No dia seguinte, o homem abriu um jornal e descobriu que as autoridades tinham encontrado algumas das ferramentas de sua última tentativa. A polícia estava buscando os dois.
Sob toda esta tensão, o último dos protótipos tinha que ser o definitivo ou sim ou sim. Günter decidiu aumentar os metros cúbicos, ainda que não tinham nem ideia de como evitariam a investigação policial enquanto recolhiam os novos materiais. Qualquer grande compra de lona resistente e leve seria fácil para a polícia detectar. De fato, era muito possível que com um balão já descoberto, as lojas de lonas se vissem obrigadas a alertar às autoridades sobre qualquer compra suspeita.
O que fizeram? Decidiram de forma individual ir de loja em loja e de cidade em cidade, comprando ao redor de cem metros quadrados cada vez, sempre uma pessoa diferente entre as duas famílias.
O dia D
A família Strelzyk.
Assim chegamos à noite do 14 de setembro, com o balão quase completo e um clima que tinha mudado de tal maneira que as condições para o lançamento eram perfeitas. Günter apressou-se a completar o balão, as famílias reuniram-se, colocaram tudo no carro e em um reboque, e foram até a colina perto de Pössneck.
Durante um bom momento ficaram quietos na escuridão, esperando para ver se ninguém tinha seguido eles. Uma vez confiados em que estavam sozinhos, começaram a armar os componentes do balão: primeiro juntando a canastra e aquele isqueiro gigante, logo a lona que os levaria voando, assegurando a cesta no chão com cordas e carregando alguns mantimentos. Depois começaram a inflar o balão caseiro.
Quando Günter deu por fim o assobio combinado, as famílias subiram rapidamente na plataforma. Peter e Günter acenderam o queimador e a cesta elevou-se do chão. Günter e o filho de Peter, Frank, ficaram em cantos opostos da canastra para cortar as cordas que ligavam o balão à terra. No entanto, o balão inclinou-se perigosamente devido a uma corda que ainda está amarrada no chão. Günter viu e a cortou rapidamente.
O aparelho começou a elevar-se à medida que o ar dentro dele esquentava, absorvendo a chama facilmente. Conforme ia se elevando, as famílias advertiram um último problema, ao olhar para cima observaram um grande buraco no centro da parte superior. Fosse o que fosse, já não havia forma de consertar, ainda que manter o queimador funcionando a uma velocidade constante resultou ser suficiente para manter o balão subindo.
Fotograma de "Night Crossing"
Assim, pouco a pouco, as luzes brilhantes da terra foram desaparecendo da vista de ambas as famílias. Em apenas 10 minutos se encontravam a 1.800 metros de altitude, portanto, só ouviam o apito do queimador de gás e o brilho de sua chama. Minutos depois, o medo apoderou-se novamente das famílias. O termômetro marcava menos de 8 graus centígrados.
Após uns 23 minutos decorridos, o balão começou a perder altitude lentamente. De repente, os queimadores apagara, o aparelho começou a girar lentamente e seu descenso acelerou à medida que o ar quente se esfriava.
Não tinha nada mais a fazer. O balão começou a descer mais e mais, convertendo em uma espécie de paraquedas no processo. As famílias agruparam-se e começaram a rezar com a esperança de que os ventos do sul os tivessem empurrado o suficiente para cruzar à Alemanha Ocidental, ademais, deviam esperar que a aterrissagem não fosse muito intensa, já que não tinham forma de controlar onde tocariam a terra.
Fotograma de "Night Crossing"
Günter acendeu então um foco improvisado que tinha construído com um farol de automóvel e iluminou o solo. Alguns segundos mais tarde viram a copa das árvores se aproximando. Em poucos segundos chegaram ao chão. O voo de aproximadamente 30 minutos tinha chegado a seu fim e ninguém se feriu.
Ali, sozinhos no meio do nada, sem saber de que lado da fronteira estavam, as duas famílias começaram a caminhar para o sul. Se tivessem chegado à Alemanha Ocidental, esta direção os levaria mais longe à segurança. Se ainda estivessem no leste, os levaria aos guardas fronteiriços, em qualquer caso, estavam tão esgotados física e mentalmente que mal se importavam.
Os primeiros cartazes após o bosque eram alentadores, continham mensagens que jamais tinham visto. Ao chegar a uma fazenda uma nova pista parecia confirmar as boas notícias, as máquinas agrícolas eram de uma empresa que não operava na Alemanha Oriental.
O momento definitivo chegou com um carro da polícia na estrada. Ainda tremendo pela possível resposta, Peter e Günter perguntaram:
- "Estamos na Alemanha Ocidental?" Os policiais, espantados e desconcertados, responderam:
- "Lógico que sim. Onde mais acham que poderiam estar?"
A família após passar a Alemanha Ocidental.
A história de ambas as famílias foi capa da Time algumas semanas depois. Inclusive a Disney fez um filme, "Night Crossing", baseado na incrível façanha de Peter e Günter. Alguns anos depois o Muro de Berlim caía e com ele o comunismo na Europa do Leste.
Calcula-se que mais de 4.000 cidadãos da Alemanha Oriental conseguiram fugir, aproximadamente a metade do número total de pessoas que tentaram. No entanto, a fuga destes dois amigos foi provavelmente a mais espetacular de tantas que existiram. Não foi a única, mas ninguém mais se atreveu a voar para cruzar o muro em busca da liberdade.
Fonte: WP.
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