Antes de escrever este artigo, sou obrigado a alertar que seu conteúdo é bem desconfortável; que se, por acaso, você se sentir incomodado com este tipo de conteúdo, aconselho que não leia, pois foi inclusive difícil escrevê-lo. Eu tentei resumir o ótimo artigo "Sacrificando Edith" para que ficasse mais palatável e visando mitigar um pouco suscetibilidades e melindres. De qualquer maneira vale a pena ressaltar que é uma história real... uma terrível. |
O Sacrifício de Isaac, por Caravaggio.
A história conta com evidências suficientes de que os fanáticos religiosos demonstram sua fé das maneiras mais incomuns e absurdas, mas certamente poucos o fizeram de maneira tão assustadora quanto o segundo-adventista -não confundir com Adventista do Sétimo Dia- Charles Freeman, de Pocasset, no estado americano de Massachusetts.
Em 1879, Charles estava certo de que estava tendo revelações divinas que exigiriam um grande sacrifício. Lembrando a história de Abraão e Isaac, ele chegou à conclusão de que devia sacrificar uma de suas filhas.
Sua esposa Harriet não ficou particularmente satisfeita com esta proclamação e tentou convencer o marido a mudar de idéia, mas nenhum argumento foi bem-sucedido. Quando, no meio da noite, Charles acordou para anunciar que Deus havia lhe dado o nome da vítima -Edith, a favorita do pai-, a chorosa Harriet fez uma última tentativa de dissuadi-lo. Mas, ao ter certeza de que essa era a vontade de Deus, consentiu.
Em 01 de maio de 1879, Mildred, a filha mais velha do casal foi enviada para outro cômodo da casa, Charles orou por Edith, esperando que ela dormisse durante o que estava por vir, ou que sua mão fosse sustentada e impedida no último momento por Deus, assim como a de Abraão. Edith abriu os olhos; e como nenhuma mão divina o segurou, Charles esfaqueou sua filha de cinco anos.
Depois de sofrer uma "tremenda agonia mental" com o que havia feito, Charles sentiu-se em paz, certo de que havia provado sua fé inabalável. Ele convocou uma reunião com os membros da seita, a quem deu um sermão desmedido que pressagiava a chegada iminente de Cristo, antes de exibir o corpo de sua filha para eles. Embora já tivesse falado sobre seu plano de um grande sacrifício, ninguém tinha idéia do que ele pretendia fazer.
Por mais chocados que parecessem, ele garantiu que em três dias ela seria ressuscitada. E surpreendentemente, os correligionários declararam que Freeman tinha razão em realizar tal ato de fé e o elogiaram por isso. A avó de Edith insistiu que não havia necessidade de contar à Mildred sobre nada disso, já que Edith voltaria em três dias e o conhecimento apenas perturbaria a garota.
Todos os outros adventistas foram para casa e continuaram com suas vidas normais como se nada tivesse acontecido. O segredo de Charles presumivelmente estava seguro com seus colegas frequentadores da igreja. Entretanto, no dia seguinte, Charles e sua esposa foram presos por filicídio. As notícias do crime, para não mencionar o fato de que vários adventistas aprovaram abertamente o que Charles havia feito, causaram uma onda de fúria. Os púlpitos ficaram cheios de denúncias de adventismo e fanatismo, e a Associação Adventista da Nova Inglaterra foi forçada a se dissociar rapidamente da congregação de Pocasset. Charles permaneceu despreocupado, certo de que a justificativa chegaria quando Deus enfim ressuscitasse sua filha no terceiro dia, como um sinal para os incrédulos.
No entanto, quando o dia da ressurreição chegou e se foi sem o menor movimento de Edith, os membros da seita ficaram genuinamente surpresos e alguns chegaram a acusar Deus de quebrar sua promessa com Charles por não ter ressuscitado Edith. No lugar da ressurreição, houve um enterro -acompanhado, com certeza, por alguns murmúrios sobre a quebra de promessas divinas-.
Segundo contaram os jornais da época, a igreja metodista, onde o funeral foi realizado, estava lotada, com uma multidão de pessoas do lado de fora do prédio. Os adventistas estavam todos presentes, a maioria de olho no caixão, esperando um milagre de última hora, e a tensão entre os religiosos e o resto da comunidade era compreensivelmente alta.
Alden Davis, agora o líder dos adventistas de Pocasset, foi impedido de falar na igreja sob ameaça de prisão. Mas no cemitério, sem a intimidação, ele subiu em cima de um túmulo próximo e pregou um endosso emocionante a Charles Freeman e ao sacrifício que cometera, agitando ainda mais a multidão e quase desatando a confusão e o caos. O homem teve que ser retirado sobre proteção do cemitério pois muitos ali presentes falavam em esfolá-lo vivo.
Tudo o que restava a partir de então era decidir o que fazer com os pais de Edith. Embora sua esposa fosse considerada co-participante voluntária da morte de Edith, ela foi libertada mais tarde e Charles Freeman foi indiciado por assassinato.
Em uma sessão especial da Suprema Corte, em janeiro de 1880, foi realizada uma audiência de sanidade mental e vários médicos especialistas argumentaram que Charles estava apto a ser julgado, mas o governador da época, John Davis Long, decidiu enviá-lo para um hospício próximo, Danvers, onde ficaria preso pelos próximos três anos até a realização de uma nova audiência de sanidade mental.
Em 1883, Charles reconheceu a morte de sua filha em um acesso de loucura, afirmando que sua permanência no hospício havia lhe ensinado o bastante sobre doenças mentais para reconhecê-las em si mesmo, segundo destacou em seu testemunho:
- "Quando cheguei a Danvers, encontrei uma condição de coisas que eu não conhecia. Conheci pessoas que viam Deus e falavam com Cristo, que acreditavam que estavam com Cristo, que acreditavam ter revelações especiais [...] Sabendo como eu, que esses homens eram loucos, homens não confiáveis, muitos deles imundos e traiçoeiros, sabendo que eram loucos; foi quando surgiu a pergunta em minha mente se eu também não estava louco."
Durante seu testemunho, Charles chorou abertamente no banco dos réus e descreveu o que o levou a matar sua filha como o ato mais terrível já cometera.
- "Sinto que fui vitimado. Não culpo nenhuma pessoa ou grupo, mas considero um caso infeliz desde o início e pelo qual talvez ninguém tenha sido responsável."
O promotor do caso foi muito cuidadoso ao apontar as implicações legais de Charles ao ceder às suas visões religiosas, mas disse que o remorso do homem não lhe convencia de forma alguma, vindo de alguém que deixou de agir de acordo com o mais alto conceito de seu dever na época, preferindo obedecer o que Deus lhe falava no ouvido do que respeitar a lei dos homens.
No seu testemunho, Harriet descreveu o marido como sendo gentil com os filhos e um bom provedor da família, mas após a conversão em 1879, tudo mudou. Charles passou a negligenciar a família e seus negócios. Tudo o que interessava era enviar uma mensagem ao mundo. Esse entusiasmo religioso causou problemas inclusive com o resto da família e seu cunhado ameaçou matá-lo devido ao proselitismo.
Ela também disse que não acreditava que o marido iria realmente machucar Edith, considerando que fosse apenas uma prova de fé, como Abraão e Isaac, e que Deus o impediria de ir longe demais.
- "Na noite em que Edith morreu, eu o vi sair do quarto, e quando voltou, carregava nossa filha nos braços; estava morta", contou Harriet. - "Ele andou com ela e orou e chorou; ele a levou para a cama e a manteve com ele toda a noite; toda a cena é como um sonho terrível, do qual mal me lembro pois parece uma lembrança terrível."
O juiz da sessão declarou que não tinha dúvidas sobre a falta de aptidão de Charles Freeman para ser julgado como uma pessoa normal. Não apenas o tribunal ouviu evidências de vários especialistas médicos de que ele estava louco no momento do assassinato, mas até mesmo seu advogado de defesa concordou que ele era louco de pedra.
Como Charles Freeman podia ser condenado à morte, o juiz recomendou plenamente que o júri o considerasse inocente por motivo de insanidade. O júri concordou e entregou o veredicto após apenas dez minutos de deliberação. Charles foi sentenciado ao Hospício de Danvers pelo resto de sua vida.
A história do caso Freeman é bem conhecida até a sua decisão, pois foi documentada judicialmente, mas a pouca informação que existe a partir da sentença não permite saber exatamente o que aconteceu com ele e quanto tempo viveu após sua condenação. Além disso, o destino de Harriet e a filha sobrevivente também é desconhecido.
Existem boatos que, por pressão de autoridades religiosas, ele foi libertado alguns anos depois e sumiu de vista, mas são só... boatos.
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Comentários
O Ser humano, vulgo "bicho homem" é incrível, inexplicável, impressionante, fantástico, assustador, impreciso, variável, inconstante e surpreendente... ( embora nada mais me surpreenda nesse mundo principalmente ao que se refere ao homem..).
Durante toda historia da humanidade, o "bicho homem" cometeu as mais terríveis atrocidades, por força, vaidade ou fanatismo.
O homem quis o poder... e matou.
O homem quis demonstrar força e beleza... e matou.
O homem quis alcançar o céu... e o inferno... e matou.
O homem quis impor uma ideia ou filosofia de vida... e matou.
O homem tende ao fanatismo e ao terrorismo.
O homem tende ao extremismo.
O homem tende a agir sem avaliar, sem ouvir, sem pensar.
O homem tende ao erro.
O homem não consegue entender limites ou fronteiras de seu próprio eu.
O homem é invasivo e evasivo ao mesmo tempo.
O homem quanto menos razão tem, mas acha ter.
O homem não tem razão de nada.
"Se você fala com Deus, você é religioso. Se Deus fala com você, você é psicótico."
Dr. House