No topo plano de uma colina íngreme, em um canto distante do norte do Japão, fica o túmulo de um pastor itinerante que, dois milênios atrás, se estabeleceu ali para cultivar alho. A lenda local conta que ele se apaixonou pela filha de um fazendeiro chamada Miyuko, teve três filhos e morreu com a idade avançada de 106 anos. Na aldeia nas montanhas de Shingō, ele é lembrado pelo nome Daitenku Taro Jurai. O resto do mundo o conhece por um outro nome: Jesus Cristo. |
Acontece que Jesus de Nazaré, o Messias, operário de milagres e figura espiritual de uma das principais religiões do mundo, não morreu na cruz no Calvário, como amplamente divulgado. Segundo o folclore local, esse foi seu irmão mais novo, chamado Isukiri, cuja orelha decepada foi enterrada em um túmulo adjacente no Japão.
O remanso bucólico com apenas um morador cristão e nenhuma igreja a menos de 48 quilômetros, Shingō, no entanto, se autodenomina "Kirisuto no Sato" ("cidade natal de Cristo"). Todos os anos, cerca de 20.000 peregrinos e pagãos visitam o local, mantido por uma fábrica de iogurte nas proximidades. Alguns visitantes pagam a entrada de 100 ienes no Museu Lenda de Cristo, um tesouro de relíquias religiosas que vende de tudo, de montanhas-russas de Jesus a canecas de café.
Alguns participam do Festival da Primavera de Cristo, uma mistura de rituais sincrética nos quais mulheres vestidas de quimono dançam em torno dos túmulos gêmeos e cantam uma litania de três linhas em um idioma desconhecido. A cerimônia, projetada para consolar o espírito de Jesus, é realizada pelo departamento de turismo local desde 1964.
Os japoneses são em sua maioria budistas ou xintoístas e, em uma nação de 126,8 milhões, cerca de 1% se identificam como cristãos. O país abriga uma grande população flutuante de religiosos populares encantados com o misterioso, o estranho e o contra-intuitivo.
Na verdade, os japoneses encontram realização espiritual por serem ecléticos. Ou seja, você pode ter tudo: um sentimento de proximidade, com Jesus, Buda e muitas outras figuras divinas, sem nenhuma das obrigações que vêm de uma orientação religiosa mais singular e ao mesmo tempo com extremo respeito a todas.
Em Shingō, a maior história já contada tem outro enredo: Jesus foi ao Japão pela primeira vez aos 21 anos para estudar teologia. Isso foi durante os chamados "anos perdidos", um hiato de 12 anos inexplicado no Novo Testamento. Ele desembarcou no porto da costa oeste de Amanohashidate, uma faixa de terra que atravessa a Baía de Miyazu, e tornou-se discípulo de um grande mestre perto do Monte Fuji, aprendendo a língua japonesa e a cultura oriental. Aos 33 anos, ele retornou à Judéia, pelo Marrocos.
Logo que chegou, Jesus, reconhecido pelas autoridades romanas, foi preso e condenado à crucificação por heresia. Mas ele enganou os carrascos trocando de lugar com Isukiri, que não era conhecido. Para escapar da perseguição, Jesus fugiu de volta para a terra prometida do Japão com duas lembranças: uma das orelhas de seu irmão e uma mecha dos cabelos da Virgem Maria. Ele viajou pelo deserto gelado da Sibéria até o Alasca, uma jornada de quatro anos, 10.000 quilômetros e inúmeras privações. Essa Segunda Volta alternativa terminou depois que ele partiu para Hachinohe, em um carro de boi de Shingō.
Ao chegar à vila, Jesus se retirou para uma vida no exílio, adotou uma nova identidade e criou uma família. Diz-se que ele viveu sua vida ministrando e ajudando os necessitados. Com profundois olhos azuis, ele era calvo na coroa e ostentava cabelos grisalhos na lateral da cabeça, usava uma capa de muitas dobras e tinha um nariz característico que, segundo observa o folheto do museu local, lhe rendeu uma reputação de "duende de nariz comprido".
Quando Jesus morreu, seu corpo ficou exposto no topo de uma colina por quatro anos. De acordo com os costumes da época, seus ossos foram então enrolados em um pulcro lençol branco e enterrados em um túmulo, o mesmo monte de terra que agora é coberto por uma cruz de madeira e cercado por uma cerca de estacas. Embora o Jesus japonês não tenha realizado nenhum milagre, ele era considerado uma pessoa muito bondosa e benevolente que não media esforços para ajudar quem necessitasse e alimentar quem tinha fome.
Isso tudo parece mais a vida de Brian do que a de Jesus. Ainda assim, o caso do Salvador de Shingō é discutido vigorosamente no museu e animado pelo folclore. Nos tempos antigos, acredita-se, os moradores mantinham tradições estranhas do resto do Japão. Os homens usavam roupas que se assemelhavam às vestes parecidas com túnicas da Palestina bíblica, as mulheres usavam véus e os bebês eram carregados em cestas trançadas de vime como as da Terra Santa. Os recém-nascidos não eram apenas envoltos em roupas bordadas com um desenho que lembrava uma Estrela de Davi, mas, como um talismã, suas testas eram marcadas com cruzes de carvão.
O museu afirma que o dialeto local contém palavras como aba ou gaga (mãe) e aya ou dada (pai) que são mais próximas do hebraico que do japonês, e que o nome da antiga vila, Heraimura, pode ser rastreado até uma diáspora do Oriente Médio. A explicação para isto, no entanto, segundo o estudioso religioso Arimasa Kubo, um pastor aposentado de Tóquio, é que Shingō pode ter sido colonizada por descendentes das dez tribos perdidas de Israel.
Para alimentar essa improvável explicação, em 2004, o embaixador de Israel Eli Cohen visitou os túmulos e dedicou uma placa, em hebraico, para honrar os laços entre Shingō e a cidade de Jerusalém. O porta-voz da embaixada Gil Haskel explicou que, embora as tribos hebreias pudessem ter migrado para o Japão, a placa era meramente "um símbolo de amizade, e não um endosso das reivindicações do Jesus japonês".
Outra teoria levantou a possibilidade dos túmulos conterem os corpos dos missionários do século XVI. Os evangelistas cristãos chegaram ao Japão pela primeira vez em 1549, mas as disputas amargas por influência e as conversões de japoneses levaram a uma proibição nacional da religião em 1614.
Os crentes foram à clandestinidade, e esses cristãos ocultos, como ficaram conhecidos, enfrentaram um perseguição feroz. Para eliminá-los, as autoridades administravam testes de lealdade nos quais padres e outros praticantes eram obrigados a pisar em uma cruz ou uma imagem de Nossa Senhora e do menino Jesus. Aqueles que se recusassem a negar suas crenças eram crucificados, decapitados, queimados na fogueira, torturados até a morte ou pendurados de cabeça para baixo em fossas para intensificar seu sofrimento. Por mais de 200 anos, até que um isolado Japão abriu suas portas para o Ocidente em 1868, o cristianismo sobreviveu em comunidades dispersas, o que talvez explique por que as chamadas tradições cristãs de Shingō não são praticadas no resto da região.
A chave para o culto a Cristo em Shingō estava em um pergaminho que supostamente era a última vontade e testamento de Cristo, ditado quando ele estava morrendo na vila. Uma equipe, que um panfleto do museu chama de "arqueólogos de uma sociedade internacional para a pesquisa de literatura antiga" alegadamente descobriu a escritura em 1936. Esse manuscrito, juntamente com outros desenterrados por um sacerdote xintoísta da mesma época, descreviam as aventuras de Cristo entre a Judéia e Japão, e identificavam Shingō como seu local de descanso final.
Curiosa e convenientemente, esses documentos foram destruídos durante a Segunda Guerra Mundial, segundo afirma o museu, e hoje só existem apenas transcrições modernas, assinadas "Jesus Cristo, pai do Natal", mantidas dentro de uma redoma de vidro. Ainda mais curioso é que Jesus viveu durante o período Yayoi do Japão, um tempo de civilização rudimentar, sem linguagem escrita, e sua família se multiplicou pela região.
Um dos membros do clã, um jovem chamado Sanjiro, era conhecido por seus olhos azuis, algo raramente visto no Japão e, como insistiu o historiador nacionalista Banzan Toya, era a prova de que a família Sawaguchi era descendente de Jesus. E Miyuko, para complicar ainda mais as coisas, era conhecida tanto como Yumiko, Miyo e Mariko.
Os pergaminhos originais supostamente foram levados a Shingō por magos orientais que incluíam um sacerdote xintoísta, um historiador e um missionário cristão carismático que pregava que o imperador japonês era o Messias judeu. A eles se juntou o prefeito de Shingō, Denjiro Sasaki, ansioso para fazer da cidade um destino turístico, que muito provavelmente aproveitou algumas histórias soltas para criar todo este verdadeiro samba do "crioulo japonês doido".
A verdade é que a maioria dos historiadores atribui a lenda a um sensacional golpe publicitário inventado pos Sasaki na década de 1930. Ele, simultaneamente, e de maneira conveniente, revelou também a descoberta de sete pirâmides antigas, todas consideradas anteriores às construídas pelos egípcios e maias por dezenas de milhares de anos. Mas a história, em vez de se dissolver com o tempo, se tornou cada vez mais tecida na identidade da cidade onde o budismo prevalece, o que pode ser uma das razões para seu sucesso.
A verdade é que o Cristo de Shingō tem muito pouco a ver com o cristianismo. É mais sobre a religião folclórica japonesa e sua esponja que tem a capacidade de absorver toda e qualquer influência, geralmente sem coerência, mesmo nas crenças mais íntimas. Essa esponja nunca fica mais evidente do que durante o Natal, uma estação que, despida de significado cristão, assumiu um significado próprio. Conta uma lenda urbana que uma loja de departamentos japonesa exibiu inocentemente um Papai Noel pregado em uma cruz. Apócrifa ou não, a história teve ressonância cultural.
O cristianismo ali não é uma prática religiosa, mas um meio de fazer um piquenique e se reunir com amigos e pessoas diferentes. Ademais alimenta a economia através do turismo e escolhe celebrar um homem que eles veem não como o filho de Deus, mas um benfeitor que viajava longas distâncias para encontrar comida para os mais necessitados. O que não deixa de ser uma homenagem muito bacana.
Shingō é modestamente festiva no Natal, com pinheiros foscos e luzes cintilantes, serpentinas brilhantes, guirlandas verdes e vermelhas e muitas velas. No Japão, a véspera de Natal é uma espécie de noite de encontro em que muitas jovens ignoram o exemplo de castidade de Maria e perdem a virgindade. Dizem que é o feriado mais romântico do Japão, superando inclusive o dia dos namorados. Mas no dia exato de Natal, as pessoas recolhem os enfeites, ornamentos e vida que segue.
Junichiro Sawaguchi, o membro mais velho da família de Shingō, considerado descendente direto de Cristo, celebra o feriado como um cidadão japonês comum, de uma maneira secular decorando sua casa e comendo frango frito. Funcionário aposentado da prefeitura, ele nunca esteve em uma igreja nem leu a Bíblia. - "Sou budista", disse ele.
Questionado se acredita na história do Jesus japonês, Sawaguchi balança a cabeça e diz timidamente que não sabe. Mas é bom lembrar que os japoneses tendem a ser bastante diplomáticos quando opinam principalmente em discussões controversas. Quando insistem em perguntar se ele acha que é possível que Jesus fosse seu parente? Momentaneamente silencioso, Sawaguchi encolhe os ombros e estende as mãos para fora, como se dissesse:
- "Não acredite em tudo o que você lê ou escuta por ai... ou não!"
Fonte: Messy Nessy.
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