Em 1988, o Escritório de Patentes dos EUA concedeu pela primeira vez na história uma patente para um animal à Universidade de Harvard. A patente número 4736866 era para um pequeno rato geneticamente modificado, branco e peludo, com olhos vermelhos e redondos. Ele recebeu o nome de OncoMouse. Os cientistas criadores do OncoRato, Philip Leder e Timothy Stewart, no entanto, não haviam criado um roedor melhor. Pelo contrário, era tremendamente pior. Mas por que diabos então fizeram isto? |
Os cientistas de Harvard modificaram geneticamente o camundongo para torná-lo altamente suscetível ao câncer -por isso o prefixo "onco", na esperança de que essa característica tornassem os camundongos úteis sujeitos de teste para a pesquisa do câncer.
Os pesquisadores criaram os ratos injetando genes de câncer conhecidos em embriões de ratos logo após a fertilização. A modificação genética não apenas tornou os ratos propensos ao câncer, mas também garantiu que eles transmitissem os genes do câncer aos seus filhos, garantindo assim um suprimento contínuo de indivíduos de teste.
OncoRato é o que os cientistas chamam de "camundongo-modelo", uma linhagem especial de camundongos usada para estudar uma determinada doença ou condição humana. Os modelos são a principal ferramenta de pesquisa para o estudo de doenças e saúde humana.
Os ratos compartilham mais de 95% do nosso DNA, o que significa que muitas doenças, incluindo Alzheimer, diabetes, obesidade, doenças cardíacas e câncer, afetam seres humanos e ratos de maneira semelhante, permitindo que os cientistas estudem essas doenças e como elas podem ser tratadas em seres humanos.
Para aprimorar a pesquisa, os ratos são geneticamente modificados para torná-los mais vulneráveis a uma doença específica. Foi assim que através da biotecnologia que os cientistas criaram ratos que desenvolvem câncer de mama ou diabetes. Camundongos com sistema imunológico comprometido para estudar estratégias de transplante de células.
Com efeito, criaram ratos com AIDS, leucemia e até ratos com propensão à obesidade. Também existem os chamados "camundongos humanizados" que transportam genes, células, tecidos e até órgãos humanos funcionais, para que o cientista possa testar drogas e vacinas.
Um rato geneticamente modificado para ser obeso ao lado de um rato saudável.
O OncoRato não foi a primeira cobaia modelo a ser criada, mas foi o primeiro mamífero a ser patenteado. Sequer foi a primeira vez que uma forma de vida foi patenteada. No início da década de 1970, Ananda Mohan Chakrabarty, engenheiro genética da General Electric, desenvolveu uma nova espécie de bactéria capaz de decompor o petróleo bruto, que ele propôs como meio de limpeza de vazamentos de petróleo.
Na época, eram conhecidas quatro espécies naturais de bactérias metabolizadoras de óleo, mas a modificação de Chakrabarty produziu um microrganismo superior capaz de digerir petróleo até duas ordens de magnitude mais rapidamente do que as quatro cepas anteriores.
Chakrabarty pediu uma patente, mas o escritório de patentes negou porque envolvia um organismo vivo. O caso foi então para a Suprema Corte dos Estados Unidos, levando a um veredicto histórico. Decidindo a favor do professor, a mais alta corte do país declarou que - "...o fato dos microrganismos estarem vivos não tem significado legal para os fins da lei de patentes."
Um ano após a decisão, em 1981, a patente foi concedida, desencadeando um longo e prolongado debate sobre a ética de patentear organismos vivos.
Em uma entrevista em 1987, o criador do OncoRato, Philip Leder, observou que a criação recebeu a publicidade mais equivocada:
- "O que realmente recebeu muita publicidade não foi a ciência fundamental gerada pela criação desses modelos de animais, mas o fato de que eles foram patenteados e gerados por muitas fábricas de cartunistas ... É divertido, é claro, e também sinistro quando você para um minuto para pensar sobre isso ..."
Ainda que naquela época não vivíamos a atual consciência ecológica e de defesa dos animais, o que Leder quis dizer sobre isso foi que o OncoRato virou piada fácil de folhetins e jornalões, quando merecia sérios destaques como avanço científico. E ele tinha razão, por mais inumano que pareça condenar um rato a ter câncer, isso salvou muitas vidas humanas. Muitos cânceres que eram atestados de óbito, hoje podem ser medianamente tratados.
A pesquisa OncoRato foi financiada pela empresa química americana DuPont, e os direitos à invenção ficaram em seu poder. Muitos acadêmicos temiam que a DuPont tentasse lucrar com o rato e impor restrições ao seu uso, o que seria prejudicial à ciência. E, para a surpresa de ninguém, a DuPont fez exatamente isso.
Primeiro, eles colocaram um preço no rato, cada camundongo tinha um preço de 50 dólares, que era dez vezes o preço, já muito alto, cobrado pelo Jackson Laboratory, uma instituição de pesquisa biomédica e uma das maiores fontes de camundongos geneticamente modificados do mundo, á época. Com efeito eles já tinham um OncoRato em seu repositório, antes da patente, por quatro anos.
Para impedir que os pesquisadores obtivessem um OncoRato gratuitamente de um colega, a DuPont proibiu qualquer pessoa de compartilhar um camundongo modificado com outro. A DuPont também insistiu nos royalties, caso fossem feitos avanços comerciais usando o OncoRato.
Mas tem mais e mostra a grande filhadaputice desta empresa. A DuPont tentou reivindicar a propriedade de todos os ratos geneticamente modificados criados para aumentar a incidência de câncer, não importava quando, quem ou como fossem produzidos.
Leder e Stewart não eram os únicos caras com o cérebro avantajado, de fato, dois outros geneticistas, Ralph Brinster e Richard Palmiter criaram o seu próprio "OncoRato" dois anos antes dos cientistas de Harvard. De acordo com o escopo da patente, eles também pertenciam à DuPont e quaisquer outros que futuros pesquisadores inventassem.
A comunidade científica ficou furiosa e tentou, à princípio, negociar com a DuPont. Muitos cientistas se rebelaram abertamente distribuindo o ratinho somente para quem quisesse. Eventualmente, a DuPont concordou em permitir aos pesquisadores o uso gratuito dos ratos, desde que não estivessem comercializando seu trabalho.
Ironicamente foi aqui que a porca torceu o rabo, pois ao mesmo tempo em que protestavam contra a aplicação de patentes da DuPont, muitos cientistas começaram a patentear seu próprio trabalho. Eles perceberam que as patentes eram o único caminho a seguir, porque, para pesquisar, os acadêmicos precisavam de fundos e, se não compartilhassem suas criações com organizações privadas, não teriam fundos suficientes para financiar sua pesquisa. No mais velho estilo "Se correr o bicho pega! Se ficar o bicho come!", os EUA se tornaram na mais louca briga de patentes científicas do mundo.
Em 2005, a patente OncoMouse expirou. A DuPont tentou estender a patente, mas os tribunais decidiram contra. De qualquer forma, as novas tecnologias tornaram obsoleto o ratinho doente por forçação da natureza, então já não importava muito. Mas o que sim importa é como uma empresa como essa continua sendo o segundo maior império químico do mundo em termos de volume de capital.
Para o bem da ciência, a maneira como a comunidade científica conduziu a pesquisa mudou para sempre. A fronteira entre os mundos acadêmico e comercial ficou bem turva à medida que as universidades se tornaram mais focadas no lucro. A piada que circula entre os círculos acadêmicos é que Harvard é um fundo multimercado com uma universidade de pesquisa ligada a ele.
Atualmente, não sem razão, muitas pessoas tecem conspiranoias sobre cientistas malucos malvadões e empresas farmacêuticas que lucram em detrimento da saúde humana. Outros acreditam que empresas com fins lucrativos estão atrapalhando a pesquisa, mantendo muito as patentes, desde sempre. Mas também há que considerar que nenhum pesquisador ou cientista acorda de manhã e pensa:
- "Hoje eu vou derrotar o coronga!" Toma seu café com pão amanhecido e manteiga e segue para seu laboratório oculto na garagem. Não é assim que funciona, pesquisam denotam milhões e o financiamento privado ainda é o melhor caminho, ainda que as leis de patentes poderiam de ser menos extensivas. Um exemplo clássico de que isso dá certo é a Microsoft. A empresa ganha milhões, faz vista grossa para outros milhões de usuários piratas e tio Bill ainda é um dos maiores (se não for o maior) beneficentes da história.
Harvard ainda lamenta a maneira como lidaram com as patentes do OncoRato, quando concedeu à DuPont esses direitos sem proteger a comunidade científica.
- “Acho que a lição para as empresas comerciais foi que Harvard se tornou o garoto propaganda por não lidar com uma patente em uma ferramenta de pesquisa. Eles tiveram muita publicidade ruim", disse David Einhorn, conselheiro do Jackson Laboratory ao Instituto História da Ciência.
A verdade é que eles não lucraram muito com a patente e isso foi um lembrete claro para o mundo comercial manter uma separação bem clara entre a cobiça exacerbada do lucro e da perda de vidas humanas. Resta saber como as empresas privadas que estão pesquisando o novo coronavírus vão se comportar na possível descoberta da vacina. Lucro ou morte?
O MDig precisa de sua ajuda.
Por favor, apóie o MDig com o valor que você puder e isso leva apenas um minuto. Obrigado!
Meios de fazer a sua contribuição:
- Faça um doação pelo Paypal clicando no seguinte link: Apoiar o MDig.
- Seja nosso patrão no Patreon clicando no seguinte link: Patreon do MDig.
- Pix MDig ID: c048e5ac-0172-45ed-b26a-910f9f4b1d0a
- Depósito direto em conta corrente do Banco do Brasil: Agência: 3543-2 / Conta corrente: 17364-9
- Depósito direto em conta corrente da Caixa Econômica: Agência: 1637 / Conta corrente: 000835148057-4 / Operação: 1288
Faça o seu comentário
Comentários