Um dia, aquele muro da vergonha rachou porque o mundo comunista ia barranco abaixo, Mikhail Gorbachov falava de Perestróica e Glasnost, reformas internas e transparência na URSS, e porque aquela enorme parede de quarenta e dois quilômetros de comprimento que separava Berlim em duas e a Alemanha em quatro, era o símbolo de um passado nefasto. Após aquelas primeiras gretas, em 9 de novembro de 1989, faz hoje 32 anos, os alemães colocaram o muro da separação abaixo. |
Com martelos, picaretas, pás, paus e inclusive com as mãos nuas, os berlinenses arremeteram contra aquele fantasma pétreo que tinha separado famílias, amizades, amores e vidas e, sobre suas ruínas, cantaram Beethoven.
Foi então que voltaram do passado as histórias dos que tinham tentado fugir do Leste ao Oeste de Berlim, por baixo através de túneis, por cima em balões aerostáticos, correndo em desafio aberto às balas que chegavam das torres de vigilância. Poucos conseguiram. O resto caiu na tentativa até que as autoridades da República Democrática Alemã (DRA), a comunista, esvaziaram os arredores do muro e abriram uma grande terra de ninguém, com arames eletrificados, patrulhas permanentes e dispositivos eletrônicos de alerta para impedir o que aqueles poucos tinham conseguido: fugir para a liberdade.
O primeiro que conseguiu foi o soldado Conrad Schumann. Foi também o que compreendeu mais rápido o que devia fazer. Sua história, épica e trágica, a de um herói grego, pesou por toda sua vida e o levou à morte.
O que resta hoje de Conrad, seu legado se é que teve algum, é uma foto símbolo de seu salto desesperado, metade pássaro, metade desespero, sobre os alambrados de arame-farpado que foram a pedra fundamental do Muro de Berlim.
Conrad saltou em 15 de agosto de 1961, quando o Muro não tinha sequer dois dias inteiros de vida. E se há uma foto, e há muitas, é porque teve um fotógrafo alerta, que clicou o instante exato: Conrad parece trepar por sobre o arame-farpado estendido no chão da famosa Bernauer Strasse, enquanto com um gesto veloz soltava seu fuzil PPSh-41, de fabricação soviética, para não cair armado do outro lado. Já no setor oeste de Berlim, Conrad correu alguns metros até dar de frente com a porta aberta de uma caminhonete da polícia da República Federal de Alemanha RFA, a ocidental, que o levou veloz para seu destino imprevisível.
Em 13 de agosto de 1961, quando a Alemanha do Leste, dividiu Berlim em duas, Conrad era um garoto de 19 anos que tinha nascido em 28 de março de 1942, quando a Alemanha nazista ainda estava em seu apogeu, mas iniciava talvez sem notar sua longa e catastrófica queda.
Conrad nasceu em Zschochau, Baviera, em uma família de pastores de ovelhas, e se alistou aos dezenove anos na polícia do setor leste de Berlim, dominado pela URSS e dirigido por Walter Ulbricht, um estalinista confesso que regeu com mão de ferro os destinos paupérrimos daquela Berlim do pós-guerra.
A crise migratória do Leste ao Oeste da Alemanha primeiro e de Berlim depois, esvaziou o setor comunista de técnicos, médicos, professores, artesãos e de dezenas de profissionais que procuravam melhor salário e maior liberdade. Eram melhores os salários na Berlim Ocidental do que na Oriental. Quem trabalhavam no Oeste e vivia no Leste gozavam de uma pequena fortuna mensal, muito superior aos que viviam e trabalhavam no Leste. Os habitantes do Oeste compravam comida barata no Leste e a URSS se via obrigada a alimentar os berlinenses de ambos lados, o deixava Nikita Khruschev furioso.
Em junho de 1961, dois meses antes do Muro, em uma tensa conferência com o presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, Khruschev ameaçou com uma guerra por Berlim. Kennedy voltou a seu país e perguntou quantas vidas americanas podia custar uma guerra com a URSS que derivaria, quase com certeza, em um conflito atômico. Os cálculos falavam de mais de cem milhões de mortos, quase a metade do país. Kennedy soube que não teria guerra e Khruschev se sentiu autorizado para dividir Berlim com um Muro.
Pelas dúvidas, no domingo 13 de agosto desse ano começaram a instalar um mar de arame-farpado, mastros de madeira e precários postos de vigilância ao longo dos quarenta e dois quilômetros de fronteira. Se o Ocidente protestasse, sempre podia voltar atrás. Mas o Ocidente calou e, com os meses, o concreto substituiu os arames.
Mas isso foi com os meses. Conrad Schumann foi um dos soldados que participaram da "Operation Rose”, como ficou conhecida a operação de dividir Berlim. Nas seguintes quarenta e oito horas, junto a seus jovens camaradas, muitos como ele não chegavam aos vinte anos, viu o que jamais tinha imaginado: famílias inteiras divididas, amores e amizades separados, incluídos os jovens que tinham ido a uma festa na Berlim Ocidental no sábado pela noite e agora não podiam regressar a casa, ou sim podiam voltar, mas a uma vida impensada e desgraçada.
Conrad decidiu seu destino em dois dias. Em 15 de agosto soube que ia saltar ao outro lado, que ia deixar para trás sua casa e sua família para começar de novo em Berlim Ocidental. Na manhã da fuga, viram calcar várias vezes com suas botas o arame da Bernauer Strasse.
Peter Leibing. o fotógrafo.
Do outro lado da cerca estava a outra parte da história. Um jovem um ano mais velho que Conrad que se chamava Peter Leibing e que ganhava a vida como fotógrafo da agência Conty Press de Hamburgo. Tinha ido a Berlim, quase duzentos cinquenta quilômetros, com o espírito e a sede e a certeza dos grandes profissionais: procurava uma imagem que fizesse história. Peter viu Conrad várias vezes pisando na cerca, de maneira que perambulou pela área sem perdê-lo de vista e com sua câmera pronta para o que fosse ocorrer.
Foi como se todo mundo soubesse o que estava prestes a acontecer. Uma caminhonete policial de Berlim Ocidental parou perto de onde patrulhava Conrad que, de repente, viu que seus camaradas não estavam à vista. Casualidade ou premeditação, deixaram-no só. Peter nem piscou, pegou sua câmera e focou Conrad que, às quatro da tarde dessa terça-feira, jogos seu cigarro fora, começou a correr, deu meio que uma primeira pisada em falso no meio do salto, se desfez de seu fuzil e caiu quase nos braços da polícia do Oeste.
Foram uns poucos segundos que Peter captou, foto a foto, com a mão gelada dos grandes artistas.
- "Não pensei em nada. Ou quase. Tinha a mente em branco e um único pensamento: 'Não quero morrer aqui, correndo'. Tudo durou quatro ou cinco segundos", recordaria Conrad anos depois.
Peter Leibing. o fotógrafo.
Conrad deixou de ser quem era para se tornar um símbolo da Guerra Fria. A foto de Peter deu a volta ao mundo, ganhou prêmios e medalhas. Há um filme muito curto que mostra a fuga de Conrad e seu final feliz, que seria talvez o último final feliz de sua vida. Ele se estabeleceu em Berlim Ocidental, conheceu sua mulher, Kunigunde, teve um filho e perdeu-se na história.
Ronald Reagan lhe devolveu a fama quando em 12 de junho de 1987, de costas ao Muro e em frente à Porta de Brandeburgo, desafiou a Gorbachov com um discurso que levava o selo de seu chefe de discursos Anthony Dolan:
- "Senhor Secretário Geral Gorbachov, se você procura a paz, se você procura a prosperidade para a União Soviética e para o Leste de Europa, se você procura a liberdade, venha a este Portão, senhor Gorbachov, abra esta porta. Senhor Gorbachov, atire abaixo este muro!" De imediato, Conrad regressou do passado e apareceu fotografado junto ao casal presidencial dos Estados Unidos.
Admitiu então, quando o entrevistaram como herói do ontem e símbolo vivo da Guerra Fria, que tinha caído no álcool durante uma dezena de anos, que tinha sido pedreiro, enfermeiro e empregado da fábrica de automotores Audi em Ingolstadt. Fotografou-se então em frente ao Muro ainda em pé, com a foto ampliada que Peter tinha lançado à fama e que ele tinha em cima de uma escrivaninha na sua casa da Baviera, junto à que o mostrava ao lado de Ronald e Nancy Reagan. Disse que jamais se arrependeu daquele salto:
- "Estou orgulhoso do que fiz. Corri um grande perigo, rompi com meu passado e comecei a suportar uma intensa pressão."
Há diversos monumentos hoje na Alemanha que celebram o "Salto à Liberdade".
Mas nunca é fácil romper com o passado. Seus pais tinham escrito dezenas de cartas nas quais imploravam que voltasse a Berlim Oriental. Quando Conrad por fim o fez, já após a queda o Muro, descobriu que essas cartas familiares foram ditadas pela Stasi, a temível polícia secreta comunista. De novo em sua terra, descobriu algo mais, e mais doloroso:
- "Quando voltei, descobri que meu gesto nunca foi aceito por alguns parentes e por velhos amigos que já não quiseram falar comigo. Mas a verdade é que só desde l9 de novembro de 1989 me senti realmente livre."
Schumann nunca conseguiu lidar com o vazio de seus amigos, que condenaram sua traição ao mundo comunista, nem a desaprovação em termos parecidos de seus pais e irmãos, a quem duvidava visitar na velha casa familiar na Saxônia. Algo rompeu nele antes, durante ou após sua fuga ledaária e da queda daquele fantasma de pedra que de uma maneira muito especial tinha moldado sua vida.
Em 20 de junho de 1998 a polícia encontro seu corpo pendurado em uma árvore perto de Riesa e da cidade de Kipfenberg, na Alta Baviera, quase nas margens do rio Elba. Hans Konrad Schumann tinha 56 anos.
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