Há um breve poema chinês que em português pode ser traduzido como "O poeta devorador de leões no covil de pedra", mas cujo título original é "Shī Shì shí shī shǐ. Parecesse que a sílaba "shi" se repete cinco vezes quando em realidade são quatro sílabas diferentes. Nada comparado com os versos: essas quatro sílabas aparecem noventa e duas vezes, e constituem toda a composição, apesar de que esta faz sentido. A chave está na diferente pronúncia e entonação que devem ser adotados ao lê-la segundo os diferentes acentos. |
No mundo há uma média de seis mil quinhentos idiomas, número só aproximado porque não existe um critério definido e universal para separar línguas e dialetos, além de que nem todas essas falas são praticadas em dia. Mas as diferenças entre umas e outras são tão profundas quanto lógicas, dados os diferentes contextos e épocas em que nasceram e se desenvolveram. É lógico, pois, que uma seja mais complicada que a outra e não só gramaticalmente.
A aprendizagem do português, por exemplo, com sua enorme quantidade de formas irregulares, ou o alemão, com suas cinco declinações, podem resultar demenciais para quem deseja aprendê-los, enquanto o problema de outros como o inglês está em sua pronúncia. O chinês é outra coisa, já que em realidade trata-se de um conjunto de línguas aparentadas sinotibetanas que têm no hànyǔ (língua dos Han) ou mandarim pequinês a referência padrão regular para suas múltiplas versões. Sua forma padrão denomina-se pǔtōnghuà, que significa "fala comum.
Carta de Kublai Kan ao imperador do Japão em 1266, escrita em chinês clássico. Via Wikimedia Commons.
Agora bem, até princípio do século XX o que se falava na China era o chinês clássico, que consistia em uma adaptação fonética do chinês literário antigo, que sobreviveu em forma escrita como língua culta inclusive após deixar de ser falada. E isso que também não apresentava um modelo unitário, já que a dilatada história dessa civilização -dois milênios e meio- fez com que o chinês clássico experimentasse mudanças de uma dinastia a outra.
Em qualquer caso, tanto o chinês antigo como o moderno têm uma característica comum que é a importância do tom: uma pequena mudança na entonação pode mudar, por sutil que pareça, o sentido do é expressado, daí o curioso que resulta o poema Shī-shì shí shī shǐ.
Shī-shì shí shī shǐ traduz-se como "O poeta devorador de leões no covil de pedra" e é o título de uma narração em verso escrita em chinês clássico, mas não em outra época senão em um século tão próximo como o XX. Concretamente, foi nos anos trinta e seu autor foi um linguista que não tinha pretensões artísticas senão demonstrar como funciona a antanáclase, com o objetivo de evidenciar a dificuldade ou inclusive impossibilidade de romanizar -adaptar a caracteres latinos- o idioma, promovendo a difusão do chinês vernacular.
Yuen Ren Chao cerca de 1916. Via Wikimedia Commons.
Na retórica antanáclase é um tropo literário, isto é, um jogo de palavras no qual se repete o mesmo termo ou frase uma e outra vez mas cada uma com um sentido diferente. No caso que nos ocupa, a escritura contraída do poema se baseia na reiteração de só noventa e dois caracteres iguais baseados no som "shi" que, ao ser lido com múltiplos tons, é interpretado de modo diferente. A apoteose da homofonia, em suma. Curiosamente, o Shī-shì shí shī shǐ é indecifrável se for transcrito ao nosso alfabeto, mas resulta relativamente fácil se for feito com caracteres chineses.
O linguista que o escreveu se chamava Yuen Ren Chao, que ademais era poeta, professor e músico. Nascido em Tianjin em 1892, aos oito anos recebeu uma Boxer Indemnity, um tipo de bolsa escolar que os EUA concedia a estudantes chineses para estudar na América.Seu nome aludia à tentativa de reeducar às novas gerações chinesas depois da Rebelião dos Boxer, o movimento popular antiocidental e anticristão na China.
Desta forma, Chao conseguiu se graduar em matemática e física pela Universidade de Cornell para depois obter um doutorado em Filosofia pela de Harvard. Sempre demonstrou facilidade para os idiomas, pois além do chinês dominava o inglês, francês, alemão, latim e grego clássico, daí tenha sido intérprete de Bertrand Russell quando este visitou a China em 1920.
Yuen Ren Chao com sua esposa, Buwei Yang. Via Wikimedia Commons.
Quando regressou a seu país, se casou com uma das primeiras mulheres que praticavam a medicina acadêmica e se dedicou ao ensino. Depois de outra viagem de ida e volta para dar aulas em Harvard, inclinou-se definitivamente pela filologia, assinando vários livros sobre o tema.
Em 1938 instalou-se outra vez nos EUA, trabalhando na Universidade de Berkeley como professor de línguas orientais. Faleceu em 1982 deixando importantes estudos filológicos e foi um dos autores do gwoyeu romatzyh, um método para transcrever o chinês mandarim ao alfabeto latino que impulsionava o Kuomintang antes de se enclausurar em Taiwan.
"O poeta devorador de leões no covil de pedra" tem transcrição ao hanyu pinyin, um método criado pelo próprio Chao para o método de transliteração do mandarim padrão tradicional ao mandarim e deste ao alfabeto ocidental, de maneira que possam ser representadas as quatrocentas e quinze sílabas que tem. No poema usam-se noventa e duas, ficando assim:
Shíshì shīshì Shī Shì, shì shī, shì shí shí shī.
Shì shíshí shì shì shì shī.
Shí shí, shì shí shī shì shì.
Shì shí, shì Shī Shì shì shì.
Shì shì shì shí shī, shì shǐ shì, shǐ shì shí shī shìshì.
Shì shí shì shí shī shī, shì shíshì.
Shíshì shī, Shì shǐ shì shì shíshì.
Shíshì shì, Shì shǐ shì shí shì shí shī.
Shí shí, shǐ shí shì shí shī, shí shí shí shī shī.
Shì shì shì shì.
Ainda que possa parecer uma mera repetição da sílaba "shi" sem nenhum significado, a verdade é que tem. A chave está na pronúncia da mesma, que pode ser feita de muitas maneiras diferentes, até vinte e duas. De fato, se você escutar em voz alta em mandarim também é ininteligível; em cantonês ou hokkien sim seria possível entender coisas soltas, mas perdendo-se o conjunto.
Em mudança, ler o poema escrito em caracteres chineses não tem problema graças a que cada caractere possui um significado diferente. A transliteração fonética em pinyin pode ajudar a compreender melhor todo o assunto:
Yǒu yi wèi zhù zài shíshì lǐ de shīrén jiào Shī Shì, ài chī shīzi, juéxīn yào chī 10 zhi shīzi.
Tā chángcháng qù shìchǎng kàn shīzi.
10 diǎnzhōng, gānghǎo yǒu 10 zhi shīzi dào lhe shìchǎng.
Nà shíhòu, gānghǎo Shī Shì yě dào lhe shìchǎng.
Tā kànjiàn nà 10 zhi shīzi, biàn fàng jiàn, bǎ nà 10 zhi shīzi shā sǐ lhe.
Tā shí qǐ nà 10 zhi shīzi de shītǐ, dài dào shíshì.
Shíshì shī lhe shuǐ, Shī Shì jiào shìcóng bǎ shíshì cā gān.
Shíshì cā gān lhe, tā cái shìshi chī nà 10 zhi shīzi.
Chī de shíhòu, cái fāxiàn nà 10 zhi shīzi, yuánlái shì 10 zhi shítou de shīzi shītǐ.
Shìshi jiěshì zhè jiàn shì ba.
Cabe esclarecer que o 10 está expresso em numeração arábica porque assim recomenda a ortografia pinyin, mas em realidade se escreve shī. Enfim, muitos estarão se perguntando que diabos significam esses inauditos versos. A tradução resulta tão surpreendente como divertida e a última estrofe constitui um fechamento perfeito para este artigo:
Em um covil de pedra estava o poeta Shi, que gostava de comer leões, e decidiu comer dez.
Costumava ir ao mercado a procurar leões.
Um dia às dez em ponto, dez leões acabavam de chegar ao mercado.
Naquele momento, Shi também acabava de chegar ao mercado.
Vendo esses dez leões, matou-os com flechas.
Trouxe os corpos dos dez leões ao covil de pedra.
O covil de pedra estava úmido. Ele pediu a seus servos que limpassem.
Após covil de pedra ser limpo, tentou comer esses dez leões.
Quando os comeu, se deu conta de que esses dez leões eram em realidade dez cadáveres de leões de pedra.
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