Os comedores competitivos de hoje são famosos por consumir dezenas de cachorros-quentes de uma só vez, mas os comedores incomuns de antigamente realizaram feitos muito mais estranhos. Relatos medievais descrevem pessoas consumindo porções generosas de pedras, aranhas e cobras, entre outras coisas venenosas, e showmen ganhavam a vida viajando pela Europa com a força de seus estranhos estômagos no início do século XVII. Mas o comedor mais incrível já registrado é Tarrare, um showman francês do século 18. |
Se a gula é um pecado, então talvez o pior pecador tenha sido Tarrare, que tinha um apetite tão insaciável que comia qualquer coisa para suprimir sua fome, até gatos vivos e cadáveres podres. Aos 17 anos ele poderia devorar todo o seu peso corporal de carne bovina em um único dia e ainda permanecia com fome.
Ninguém se lembra qual era o verdadeiro nome do pantagruélico francês Tarrare, mas todos o chamavam de Tarrare. Acredita-se que seu apelido tenha sido derivado da expressão popular francesa "bom-bom tarare" usada na época para descrever uma explosão poderosa , e especula-se que o nome poderia ter sido aplicado a Tarrare por causa de sua prodigiosa flatulência.
Tarrare nasceu perto de Lyon em 1772. Quando ele era adolescente, seus pais o expulsaram de casa porque ele comia muito. Durante vários anos, Tarrare percorreu o país na companhia de ladrões e prostitutas, mendigando e roubando comida, antes de trabalhar como charlatão viajante, engolindo pedras, rolhas e animais vivos para atrair uma multidão.
Ele comia vorazmente e dizia-se que gostava particularmente de carne de cobra. Em 1788, mudou-se para Paris para trabalhar como artista de rua fazendo acrobacias semelhantes. Depois de um desses shows, Tarrare sofreu uma grave obstrução intestinal e teve que ser levado para o hospital, onde foi tratado com poderosos laxantes.
Essa experiência podia ter levado outra pessoa a desistir de uma carreira tão perigosa, mas não Tarrare. Ao contrário, ao se recuperar, ele se ofereceu para demonstrar seu ato engolindo o relógio e a corrente do cirurgião. O cirurgião não achou graça e respondeu que abriria Tarrare para recuperar seus pertences se o fizesse.
Após o início da Guerra da Primeira Coalizão, Tarrare se alistou no Exército Revolucionário Francês. Infelizmente para ele, as rações militares não eram suficientes para satisfazer seu apetite. Ele começou a realizar tarefas para outros soldados em troca de uma parte de suas rações e vasculhava o monturo do rancho em busca de restos.
A dieta frugal dos militares o deixou com extrema exaustão e ele foi internado em um hospital. Os médicos quadruplicaram sua ração, mas ele ainda continuava com fome. Ele andava à espreita à procura de comida nas sarjetas e caixotes do lixo, e entrava sorrateiramente no quarto do boticário para comer os cataplasmas.
Os cirurgiões militares, incluindo o professor Percy, o cirurgião-chefe do hospital, ficaram tão surpresos com seu apetite que ele foi obrigado a ficar no hospital para que os médicos pudessem estudá-lo mais de perto.
Como parte de um experimento para determinar sua capacidade de alimentação, Tarrare uma vez comeu uma refeição destinada a 15 trabalhadores, incluindo duas grandes tortas de carne, pratos de gordura e sal e quatro galões de leite, e imediatamente adormeceu.
Em outra ocasião, ele foi presenteado com um gato vivo. Tarrare rasgou o abdômen do gato com os dentes e bebeu seu sangue, e começou a comer o gato inteiro, exceto os ossos, antes de vomitar seu pêlo e pele. Ele também comeu uma variedade de outros animais, incluindo cobras, lagartos e cachorros. Ele também engoliu uma enguia inteira sem mastigar, tendo primeiro esmagado sua cabeça com os dentes.
Apesar de seu apetite voraz, Tarrare nunca parecia engordar. Ele era esbelto e de estatura média. Durante sua adolescência, ele pesava apenas 60 quilos. A única indicação de sua dieta incomum era sua boca que era anormalmente larga e a pele de seu abdômen que pendia frouxa como uma enorme bolsa de couro, que ele podia enrolar na cintura.
Mas depois de ter comido uma refeição saudável, sua barriga podia se distender de maneira notável. Tarrare suava profusamente e estava constantemente cercado por um fedor tão forte que não dava para suportar a uma distância de vinte passos, como descreveu o Dr. Percy. Tarrare cheirava ainda pior depois de comer, seus olhos e bochechas ficavam injetados de sangue e um vapor visível saia de seu corpo.
Depois de alguns meses no hospital, o conselho militar perguntou em quanto tempo Tarrare poderia retornar ao serviço. Mas o Dr. Percy, não querendo perder um assunto tão fascinante, teve uma ideia bizarra: usar Tarrare para enviar documentos com seu próprio corpo. Tarrare foi convidado a engolir uma caixinha de madeira com um documento dentro. Dois dias depois, a caixa foi recuperada de seu excremento, com a caixa e o documento em boas condições.
Depois que o experimento foi repetido com sucesso no quartel-general do exército francês, Tarrare assumiu um novo papel como espião. Sua primeira tarefa foi entregar uma mensagem a um coronel francês preso em uma fortaleza prussiana.
Embora o general soubesse que Tarrare era um ativo valioso, ainda assim não quis confiar a ele nenhum documento de real importância. Assim, o glutão foi induzido a engolir uma simples nota dizendo ao coronel francês preso que enviasse de volta, pelo mesmo mensageiro, todas as informações possíveis sobre os movimentos das tropas prussianas.
Como o general suspeitava, Tarrare foi capturado fora da cidade de Landau. O pobre Tarrare foi revistado e chicoteado, mas ainda assim não traiu sua tarefa, mas os prussianos tinham maneiras de fazer os prisioneiros falarem e em 24 horas Tarrare cedeu e explicou o esquema das coisas. Tarrare foi levado para a latrina e, finalmente, 30 horas depois de ser engolida, a caixinha de madeira emergiu. Quando os prussianos leram a mensagem ficaram furiosos porque esperavam algo muito mais importante.
Aterrorizado com a provação, Tarrare voltou ao hospital e implorou ao Dr. Percy para curá-lo. Infelizmente, todos os métodos conhecidos tentados: tintura de ópio, vinho azedo, pílulas de tabaco e grandes quantidades de ovos cozidos, não surtiram efeito sobre o apetite de Tarrare.
Esforços foram feitos para manter Tarrare em dieta controlada, mas incapaz de suprimir sua fome, ele saía sorrateiramente do hospital para procurar miudezas do lado de fora dos açougues e lutar com cães vadios por carniça nas sarjetas, becos e lixeiras.
Ele até bebeu o sangue de outros pacientes submetidos à sangria e várias vezes foi pego tentando comer os cadáveres no necrotério. Os outros médicos reclamavam que Tarrare deveria ser internado em um manicômio, mas Percy insistiu que ele permanecesse no hospital. Mas quando uma criança de 14 meses que estava internada desapareceu misteriosamente, Tarrare tornou-se um suspeito imediato. Desta vez nem mesmo Percy foi capaz de defendê-lo, e os médicos e enfermeiros enfurecidos afugentaram Tarrare.
Quatro anos depois, em 1798, Tarrare apareceu em um hospital em Versalhes. Percy foi vê-lo e o encontrou fraco e acamado. Tarrare disse a Percy que havia engolido um garfo de ouro dois anos antes, que ele acreditava estar alojado dentro dele e causando sua fraqueza atual, mas Percy o diagnosticou como afetado pela tuberculose avançada. Um mês depois, Tarrare foi acometido de uma terrível diarreia e morreu alguns dias depois.
O cadáver apodreceu rapidamente, e os cirurgiões do hospital detestaram fazer uma dissecação. No entanto, o cirurgião-chefe do hospital de Versalhes superou seu desgosto e abriu o cadáver. Ele descobriu que a garganta de Tarrare era anormalmente larga e enchia a maior parte da cavidade abdominal. Quando suas mandíbulas foram forçadas a abrir, os cirurgiões puderam ver um amplo canal até o estômago. Nenhum garfo dourado foi encontrado.
A causa da extrema gula de Tarrare nunca foi diagnosticada. Ele podia estar sofrendo de hipertireoidismo ou algum tipo de doença endócrina. A polifagia ou fome anormal é um dos sintomas mais comuns da diabetes mellitus, que causa uma interrupção na capacidade do corpo de transformar a glicose dos alimentos em energia. A ingestão de alimentos faz com que os níveis de glicose aumentem sem um aumento correspondente de energia, o que leva a uma sensação persistente de fome.
Questões também foram levantadas sobre a validade das alegações, mas o Dr. Percy era o Cirurgião Chefe do Exército Francês, um professor universitário, inventor de importantes implementos médicos no campo de batalha e um médico altamente respeitável cuja documentação pessoal sobre Tarrare era considerada credível o suficiente no momento de sua publicação para ser destaque em textos médicos respeitáveis, como The Study of Medicine, Popular Physiology e London Medical and Physical Journal.
Tarrare não foi o único caso na história. Menos de trinta anos após a morte dele, um cara chamado Antoine Langulet foi preso pela polícia de Paris e internado em um asilo para criminosos insanos. Um sujeito alto e magro, com pouco menos de 77 quilos, Langulet era conhecido por comer algumas das substâncias mais repugnantes.
- "Ele gostava mais de carne podre cheia de varejeira do que de um bife fresco. Ele passava o dia espreitando na janela de sua humilde morada, mas depois do anoitecer, ele se aventurava a vasculhar as ruas, coletando miudezas e carne podre das sarjetas e enchendo os bolsos com seus tesouros fétidos", escreveu Jan Bondeson no livro "The two-headed boy, and other medical marvels".
No livro sobre maravilhas e bizarrices médicas, Jan também fala de um certo Charles Domery, um soldado francês, que tinha um apetite igualmente voraz.
- "Enquanto estava em um acampamento do exército nos arredores de Paris, Charles Domery comeu 174 gatos em um ano", escreveu Jan. - "Cães e ratos sofriam igualmente com suas mandíbulas impiedosas, e ele também comia 4 ou 2 quilos de grama por dia, se pão e carne fossem escassos. Ele gostava mais de carne crua do que de carne cozida, e o fígado de boi cru era seu prato favorito."
Mas o pior ainda estava por vir: quando servia a bordo de um navio da marinha, a perna de outro marinheiro foi atingida por uma bala de canhão, Charles a agarrou e começou a comer com vontade, como se fosse uma grande iguaria, até que outro marinheiro a arrancou dele com desgosto e a jogou no mar.
Tais exemplos extremos de polifagia talvez não surjam mais hoje devido à disponibilidade de diagnóstico e cura modernos.
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