A história começou há cem anos, em 1902, quando um oficial e naturalista russo, Vladimir Klavdievich Arsenyev, deixou a Varsóvia para pesquisar na terra ussuriana. Foi durante uma de suas expedições em recantos profundos da taiga que Vladimir conheceu o solitário Derchu Ojal, um caçador incomum do povo udege -ainda que alguns historiadores dizem que ele era nanai- Nas margens do rio Tadushi, Vladimir o convidou para ser seu guia. Com a passagem do tempo, os dois ficaram cada vez mais fascinados um com o outro e se tornaram amigos até a morte. |
Derchu nasceu e viveu a vida toda na região de Ussuri, no extremo oriente russo. A data exata de seu nascimento é desconhecida, mas as estimativas dizem que foi em 1839. Ele perdeu toda a sua família em uma epidemia de varíola, enquanto vagavam no vale do rio Ussuri, engajados na caça comercial de animais.
Desde 1902, quando já tinha cerca de 55 anos, ele participou como guia nas expedições lideradas por Vladimir. O encontro dos dois foi, na verdade, um choque de dois extremos. O capitão Vladimir era então um pesquisador jovem e bem-educado. Classificava as espécimes de flora e fauna que descrevia com conhecimento especializado, às vezes, rotulando-as com nomes latinos da nomenclatura binomial criada pelo naturalista Gaspard Bauhin.
Por outro lado Derchu do clã Ojal, já estava no final de sua jornada como um sábio da floresta, que conversava com as pedras, com as árvores e os animais. Para ele todos eram criaturas vivas. E se Vladimir olhava a natureza de fora, objetiva e cientificamente, então o olhar de Derchu era completamente o oposto, percebendo a natureza de dentro, o mundo do qual ele fazia parte.
Derchu do clã Ojal.
Vladimir e o "homem da floresta" viajaram juntos muitos quilômetros pela taiga de Ussuri de 1902 a 1908 e se tornaram grandes amigos. Enquanto Vladimir registrava inúmeras espécies da flora e fauna siberiana e o estilo de vida dos povos étnicos nativos, Derchu ganhava o respeito e admiração de Vladimir e equipe com sua inteligência.
- "Este homem me interessou. Algo nele era especial, original. Ele falava com simplicidade, calma, mantendo-se modestamente, não insinuante", diria Vladimir mais tarde. - "Ele me contou muitas coisas sobre sua vida, e quanto mais ele me contava, mais solidário eu me tornava."
Vladimir viu diante dele um caçador primitivo, que toda a sua vida havia percorrido a taiga e que estava livre daqueles vícios que a civilização das cidades traziam. Derchu vivia de sua caça, cujo couro e carne ele trocava por objetos, por tabaco, chumbo e pólvora. O próprio rifle ultrapassado dele era herança de seu pai.
Vladimir Klavdievich Arsenyev
Derchu contou que não sabia exatamente qual era a sua idade, mas com mais de cinquenta anos nunca tivera uma casa, que sempre viveu a céu aberto e só no inverno montava um abrigo temporário de mato ou casca de bétula. E para ele estava muito bom.
- "Certa vez ele me contou que toda sua família havido morrido há muito tempo, e ficou perdido em pensamentos por alguns segundos", disse Vladimir. - "Ele ficou em silêncio por um tempo e depois continuou: 'Antes eu também tinha uma esposa, um filho e uma filha. A varíola acabou com toda essa gente. Agora só restou eu.' Seu rosto ficou triste com a lembrança de seus sofrimentos."
Esta foi uma das poucas vezes que Vladimir notou um grande estado de tristeza e lamentação em Derchu, por causa de seu sofrimento.
-"Eu tentei consolá-lo, mas qual seria o meu consolo para um homem solitário, de quem a morte tirou sua família, seu único consolo na velhice? Então apenas disse que sentia muito e que queria ajudá-lo", contou Vladimir. Derchu não respondeu e apenas abaixou a cabeça ainda mais.
- "Eu queria de alguma forma expressar minha simpatia por ele, fazer algo por ele, mas não sabia exatamente o que fazer. Finalmente pensei em algo: ofereci-lhe a troca de sua arma velha por uma nova", lembrou Vladimir.
O Capitão e Derchu.
Mas Derchu, agradeceu e recusou, dizendo que sua berdanka era querida por causa da memória de seu pai, que estava acostumado com ela e que atirava melhor que a maioria das armas novas e finalmente riu.
Derchu tinha sua própria sabedoria única, uma sabedoria animista, como Vladmir costumava dizer. Ele não parecia ser uma criatura muito social, mas sim uma parte da natureza em que vivia. Uma visão semelhante do mundo pode ser encontrada na sabedoria conhecida pelo amor à contemplação da natureza seguido pelos mestres zen budistas.
Como os mestres zen, todos os sábios e místicos de todo o mundo afirmam, cada um de uma maneira diferente, que a fé no "eu" é a maior ilusão em que podemos viver. Nenhum, no entanto, expressou isso de uma maneira como a de Derchu, embora muitos estivessem bem próximos disso. Derchu era um homem tão simples que ele expressava sua sabedoria implicitamente apenas na fala, não usando nenhum pronome pessoal.
A equipe de Vladimir
A magnanimidade de Derchu era nutrida por sua percepção da espiritualidade essencial da natureza. Ele falava com o fogo e com o vento e a água como se fossem pessoas. Certa vez um membro da equipe riu e perguntou por que ele fazia aquilo? Derchu responde porque eles estão vivos.
- "Fogo furioso, água e vento são assustadores", disse ele. - "São homens poderosos." Uma forte brisa apareceu de repente, chicoteando as folhas, como se respondesse às suas palavras. Em outra ocasião, Vladimir flagrou Derchu conversando com uma grande rocha e ficou curioso para saber o motivo.
- "Eu dei uma topada nela. Acho que ela não está se sentindo muito bem", disse o homem da floresta e colocou a pedra calmamente contra o caule de uma árvore.
Anteriormente, em uma imagem magnífica, Derchu e Vladimir estavam sentados em uma área elevada apreciando um ardente sol poente, quando Derchu, com seu inseparável cachimbo no canto da boca, explicou que o sol é o homem mais importante de todos, porque se ele morrer, todo o resto também morre. Vladimir então notou que enquanto ele estava preocupado com importantes imperativos sociais e morais, Derchu, da sua forma simples, estava ligado a verdades cósmicas. Vladimir se sentiu verdadeiramente abençoado por conhecer aquele homem.
No final da sua expedição de 1907, quando a visão e outros sentidos de Derchu começaram a desaparecer com a idade, Wladimir convidou o amigo para morar em sua casa em Khabarovsk. Ele à princípio aceitou, mas não se sentiu à vontade com os confortos da civilização, do progresso e da vida moderna.
Derchu descobriu que não tinha permissão para cortar lenha ou construir uma cabana e lareira no parque da cidade, nem atirar dentro dos limites da mesma. Ele se sentia sufocado em viver dentro de quatro paredes. Na primavera de 1908, ele pediu permissão a Vladimir para retornar à floresta. Como presente de despedida, Vladimir deu-lhe um novo rifle.
Na primavera de 1908, Derchu se despediu de seu bom amigo "capitão" e então partiu a pé da região de Amur para o krai de Primorsky, para sua terra natal, para as nascentes do rio Ussuri. Ele preferiu retornar à natureza intocada com seus muitos perigos.
Infelizmente, Derchu do clã Ojal foi encontrado morto perto da estação de Korfovskaya, não muito longe de Khabarovsk. O crepúsculo o pegou no caminho e Derchu fez uma fogueira perto da estrada para passar a noite fria de primavera. Derchu não tinha nenhum objeto de valor, mas os ladrões se apoderaram de seu novo rifle, que era uma coisa muito valiosa para os moradores da taiga naquela época.
Segundo Vladimir relataria mais tarde, o amigo foi assassinado em 13 de março de 1908 pelo condenado Kozlov na área da passagem de Khekhtsir, perto de uma pedreira de granito. Hoje um grande bloco de granito repousa no local em memória dele.
Vladimir se sentiu desconsolado com a perda do amigo e por alguns anos se sentiu culpado por sua morte por ter lhe
presenteado com a arma. Quase 10 anos depois, em 1917, ele decidiu juntar as anotações e diários que fazia em suas expedições. Em 1921 ele publicou o livro "Sobre o território de Ussuri" e em 1923 lançou o muito famoso "Dersu Uzala". Vladimir decidiu "ocidentalizar" um pouco o nome do protagonista com base na transcrição fonética que seus homens pronunciavam ao dizer "Derchu Ojal.
O livro foi adaptado em dois longas-metragens. Em 1961, o diretor Agasi Babayan fez a primeira adaptação de "Dersu Uzala". O segundo filme foi filmado em 1975 por Akira Kurosawa. Um dos filmes mais bacanas da história do cinema ganhou o Prêmio de Ouro e o Prix FIPRESCI no 9º Festival Internacional de Cinema de Moscou e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1976. George Lucas deu a entender que o personagem de Dersu Uzala inspirou o mestre Jedi de Star Wars Yoda.
Descrito como "um testemunho do valor da amizade e da indomabilidade do espírito humano", a co-produção soviético-japonesa de 1975 foi o primeiro filme em língua não japonesa do célebre cineasta japonês Akira Kurosawa, que é conhecido por ter se envolvido com maestria com tudo, desde lutas locais com espadas até peças de Shakespeare.
Kurosawa foi eleito o "Asiático do Século" pela revista de notícias Asia Week em 1999. E seu "Setes Samurais" foi classificado no topo do pódio da lista de "Os 100 Melhores Filmes do Cinema Mundial" compilada pela revista de cinema britânica Empire em 2010.
O início dos anos 1970 foi o período mais difícil da carreira de Kurosawa. Ele havia sido retirado do épico nipo-americano de Pearl Harbor, "Tora! Torá! Torá!" e não conseguiu financiar seus projetos no Japão. No início de 1973, pouco mais de um ano depois de uma tentativa de suicídio -ele cortou os pulsos e a garganta em dezembro de 1971-, um convite do estúdio soviético Mosfilm restaurou a fortuna de Kurosawa.
Ele escolheu adaptar o livro que queria filmar desde a década de 1930, o referido livro de memórias do explorador Vladimir Klavdievich Arsenyev. Feito em russo e quase inteiramente filmado ao ar livre na Sibéria durante 8 meses, "Dersu Uzala" - que você pode conferi na íntegra e e legendado em português logo acima- foi um sucesso de bilheteria, vendendo mais de 21 milhões de ingressos na União Soviética e na Europa, além de arrecadar US$ 1,2 milhão nos Estados Unidos e Canadá, um milagre se considerarmos que foi exibido em plena Guerra Fria.
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