Um forte terremoto de magnitude 7,8 na escala Richter atingiu o Nepal em 25 de abril de 2015. Foi o pior tremor de terra desde 1934. A cidade de Catmandu, a mais atingida, viu seus prédios, casas, templos e monumentos ficarem em ruínas, entre eles, grande parte da histórica Praça Durbar, um Patrimônio da Humanidade. Mas exceto por algumas rachaduras, a casa da Deusa Viva da cidade permaneceu intacta. Em grande parte desconhecida do mundo exterior, a instituição centenária da divindade infantil do Nepal, a Kumari Devi, está profundamente enraizada na cultura do vale de Catmandu. |
Chanira Bajracharya, a Kumari de Patan, durante uma procissão em 2016. Via: Nirmal Dulal - Wikimedia/CC BY-SA 4
A Kumari é venerada e idolatrada por alguns hinduístas do país e por budistas nepaleses, mas não por budistas tibetanos. Jovem, bonita e decorosa, acredita-se que até mesmo um vislumbre dela traz boa sorte.
Kumari Devi, ou Deusa Viva, é ima tradição de adorar uma pré-adolescente virgem escolhida como manifestação da energia feminina divina ou Shakti nas tradições religiosas dármicas. Acredita-se que a menina esteja possuída pela deusa Taleju ou Durga. A palavra Kumari deriva do sânscrito e significa princesa.
Embora a veneração de uma Kumari viva no Nepal seja relativamente recente, datando apenas do século XVII, a tradição de Kumari-Puja, ou adoração de virgem, existe há muito mais tempo. Há evidências de adoração de virgem ocorrendo no Nepal por mais de 2.300 anos.
A tradição da Kumari só é seguida em algumas cidades do Nepal, que são Catmandu (onde a prática é particularmente prevalente), Lalitpur (antiga Patan), Bhaktapur, Sankhu, e Bungamati. O processo de seleção e as funções das Kumaris variam entre as diferentes cidades.
Sajani Shakya, na época em que era a Kumari de Bhaktapur. Via: Acarvin - Wikimedia/CC BY-SA 4
Existem várias lendas que contam como começou a tradição atual das Kumari. A maioria das lendas, no entanto, envolve o conto do rei Jayaprakash Malla, o último rei nepalês da dinastia Malla. De acordo com a lenda mais popular, um rei e sua amiga, a deusa Taleju, se encontravam secretamente em seus aposentos reais tarde da noite enquanto ele jogava tripasa, um jogo de dados. A deusa vinha todas as noites para jogar com a condição de que o rei se abstivesse de contar a alguém sobre seus encontros.
Uma noite, a esposa do rei o seguiu até seu quarto para descobrir com quem o rei se encontrava com tanta frequência. A esposa do rei viu Taleju e a deusa ficou furiosa. Ela disse ao rei que se ele quisesse vê-la novamente ou que ela protegesse seu país, ele teria que procurá-la na comunidade Newari (Shakya), pois ela estaria encarnada como uma garotinha entre eles. Na esperança de fazer as pazes com a deusa, o rei Jayaprakash Malla deixou o palácio em busca da jovem que estava possuída por Taleju.
Da mesma forma, há outra história sobre o desaparecimento de Taleju. Alguns acreditam que a deusa visitava o rei Trailokya Malla todas as noites na forma humana. Como outras histórias lendárias, o rei e a deusa jogavam tripasa enquanto discutiam o bem-estar do país. No entanto, uma noite, o rei Trailokya Malla fez investidas sexuais contra Taleju. Como resultado, a deusa enfurecida parou de visitar o palácio. O rei arrependido adorou e implorou por seu retorno. Finalmente, a deusa concordou em aparecer no corpo de uma virgem da família Shakya.
Kumari Devi de Catmandu, em março de 2011. Via: Clemensmarabu - Wikimedia/CC BY-SA 4
Ainda hoje, acredita-se que o sonho de uma mãe com uma serpente vermelha seja um presságio da elevação de sua filha à posição de Kumari. E a cada ano, o rei nepalês busca a bênção da deusa no festival de Indra Jatra. Esta tradição mudou desde 2008, quando país se tornou uma das repúblicas mais jovens do mundo.
O título de Kumari é transitório; quando a menina menstrua pela primeira vez, ou perde sangue em um acidente ou fica doente, ela precisa renunciar formalmente ao título mediante cerimônias próprias que abrem caminho para a escolha de sua sucessora. A Kumari atual é Trishna Shakya, que foi "endeusada" em setembro de 2017, quando tinha três anos.
Depois que Taleju deixa a Kumari, há um frenesi de atividades para encontrar sua substituta. O processo de seleção é conduzido por cinco sacerdotes budistas. Líderes religiosos, que possam conhecer candidatas elegíveis, também são informados de que uma busca está em andamento.
Chanira Bajracharya, a Kumari de Patan. Via: Nirmal Dulal - Wikimedia/CC BY-SA 4
As meninas elegíveis são da casta Newar Shakya, formada por ourives. Ela deve exibir sinais de excelente saúde, nunca ter derramado sangue ou ter sido acometida por qualquer doença, e ainda deve ter a dentição perfeita, com cabelos e olhos bem escuros. As meninas que passam nesses requisitos básicos de elegibilidade são examinadas seguindo o código battis lakshanas, ou as trinta e duas perfeições de uma deusa.
Em anos recentes, a controvérsia sobre o papel de Kumari aumentou bastante devido a alguns rituais bem polêmicos, entre eles, o de que a jovem candidata é levada ao templo de Taleju e solta no pátio, onde duas dúzias de cabeças decepadas de cabras e búfalos são iluminadas à luz de velas. Se a candidata realmente possuir as qualidades de Taleju, ela não demonstra medo durante esta experiência. Se ela o fizer, outra candidato é levada para passar pela mesma experiência.
O palácio Kumari Ghar na Praça Durbar. Via: @orphan0713 - Instagram.
Por essas e outras não é mais tão fácil para as autoridades nepalesas recrutar candidatas entre as famílias Shakya. No entanto, assim que a garota escolhida completa os ritos de purificação tântrica, ela é levada para morar no Kumari Ghar, um palácio no centro da cidade, logo após a procissão que cruza as ruas da cidade.
A Kumari é rodeada na mesma hora por uma maré humana enfurecida. Ela não se mexe, empoleirada em seu trono no topo de uma imensa carruagem antiga, que é puxada por homens que vão abrindo caminho -não se sabe como- pelas ruas abarrotadas da velha Catmandu.
O coração da cidade volta a ser mágico, atemporal. Dá para esquecer o trânsito, a poluição, a miséria, as crianças que vomitam na rua, os xerpas que são só pele e osso e que passam o dia inteiro carregando nas costas enormes fardos e embalagens. Abre-se espaço para o ópio de todos os povos: o sonho. Um sonho divino, encarnado por uma menininha de uns 10 anos.
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