Os médicos não entendiam como a doença tinha evoluído tão rapidamente e o pastor assegurava não ter feito nada raro nas semanas anteriores. Até que, bombardeado pelas perguntas dos médicos, recordou:
- "Bem, eu dei uma soprada em uma vaca".
Os médicos escutaram atônitos seu relato. O homem havia colocado a boca no órgão genital de uma vaca para, literalmente, tentar inflá-la. Não era o único, toda a tribo, os nuer, fazia a mesma coisa desde tempos imemoriais para tratar de estimular a produção de leite.
O episódio, segundo recorda em seu blog um operador de câmera do Médicos sem Fronteiras, é desde então a conversa habitual do café da manhã quando chega algum visitante à missão médica no Sudão do Sul. Mas o sopro é bem mais que uma fonte de piadas fáceis e grosseiras. Agora, quando meio mundo tem em seu bolso um celular mais sofisticado que a nave que levou a Neil Armstrong à Lua, é difícil crer, mas houve um tempo no qual meia humanidade soprava os órgãos das vacas. A sobrevivência estava em jogo.
A razão é muito conhecida para os etnólogos. Ainda que muitas crianças da cidade já não saibam, as vacas não dão leite o ano todo. Dão leite quando têm um filhote para alimentar, assim como as mulheres. De modo que quando um bezerro morre ou desaparece, sua mãe deixa de produzir leite. Isto, em um povoado dependente do gado, pode constituir uma tragédia. Por isso, ao longo da pré-história e da história os criadores de gado inventaram as mais diversas soluções para tentar enganar a vaca para que continuasse produzindo leite: colocando um bezerro de outra mãe ou introduzindo ar através do órgão genital para produzir uma espécie de falsa gravidez.
O que viram os médicos no Sudão em 2011 são os vestígios de uma prática que dominou o planeta, como demonstrou o etnólogo Jean-Loïc Le Quellec, do Centro Nacional de Pesquisa Científica francês. Em um estudo publicado na revista do Museu Nacional de História Natural de Paris, ele mostra uma gravação na rocha realizada há uns 6.000 anos em Wadi Imrâwen, em Messak (Líbia). Nele podemos observar uma figura humana aparentemente insuflando ar na vagina de uma vaca. Em outra imagem, uma pintura rupestre realizada em Immidir (Argélia) há uns 4.000 anos, aparece a mesma estampa.
Como constata a arte rupestre, sustenta Jean-Loïc, durante milênios os seres humanos se agacharam para soprar o órgão de uma vaca, com a esperança de aumentar o período de lactação e assim conseguir mais leite para a família. Hoje sabemos que há uma explicação científica: a estimulação da vagina da vaca favorece a liberação da oxitocina, um hormônio que facilita a lactância.
A prática, que olhada com olhos ocidentais é asquerosa, chegou até nossos dias. Os etnólogos observaram a técnica de sopro ancestral nos nuer do Sudão, nos tuaregs do Níger, nos fulani de Mali, nos teda de Chade, nos beduínos do Egito, nos masai do Quênia e em várias tribos da África do Sul, Namíbia, Tanzânia e um longo etcétera.
Mas não é em absoluto um costume africano. De alguma maneira, a prática fixou-se no DNA do ser humano desde que soltamos a lança, nos sedentarizamos e começamos a domesticar os animais selvagens em vez de sair para caçá-los. No século XVIII, quando o explorador europeu Johann E. Fischer chegou a Sibéria, viu como os yakutos -o maior grupo autóctone da Sibéria- sopravam no útero de suas vacas para que dessem mais leite. Na Índia, a prática, conhecida como phooka, era realizada mediante um cano de bambu e foi proibida já em 1890 pela Lei de Prevenção da Crueldade contra os Animais.
- "Desde que soube que a vaca e a búfala eram submetidas à prática da phooka, desenvolvi uma forte rejeição pelo leite", escreveu Mahatma Gandhi em sua autobiografia.
- "A técnica não é desconhecida na Europa, onde foi praticada no século XIX pelos camponeses da Hungria e Bósnia, que sopravam o órgão genital de suas vacas mediante um pequeno tubo", adverte Jean-Loïc em seu estudo. Na França, a prática aparece em documentos históricos ao longo do século XIX e segue sendo realizado ainda hoje na região de Aubrac.
E a técnica também foi observada na Irlanda. Em 1681, o viajante inglês Thomas Dingley descrevia esta prática com humor, depois de um passeio pelo país:
- "Ao ordenhar as vacas, quando o leite não sai com facilidade, sopram com suas bocas todo o ar que podem, motivo pelo qual muitas vezes acabam com a cara cheia de bosta de vaca".
O acompanhamento desta técnica ao longo da história serviu para esclarecer uma das etapas importantes na evolução humana. Segundo a hipótese clássica, postulada em 1981 pelo arqueólogo britânico Andrew Sherratt, os caçadores-coletores começaram a domesticar os animais selvagens há uns 10.000 anos para ter uma fonte móvel de carne. Ordenhar o gado para obter leite ou aproveitar sua lã teriam sido inovações de uma fase posterior, uma parte a mais da "Revolução dos Produtos Secundários" executada ao menos três milênios depois.
No entanto, a análise de restos de vasilhas de cerâmica do Oriente Próximo mostraram que os povos da região já faziam queijo há 8.500 anos. E, segundo Jean-Loïc, a presença da técnica do sopro na arte rupestre do Saara prova que a primeira difusão de gado no continente africano foi acompanhada pela técnica da ordenha. Os pecuaristas procedentes do Oriente Próximo entraram na África já bebendo leite há mais de 6.000 anos. E quando suas vacas estavam secas, sopravam por seus órgãos genitais, como seguem fazendo os pastores nuer no Sudão do Sul.
Muito provavelmente você já tenha visto uma famosa fotografia que mostra um jovem africano com a cara enfiada no traseiro de uma vaca, com uma legenda tremendamente grosseira com conotação sexual. Como podemos ver tem muito mais a ver com sobrevivência: uma prática milenar, hoje vista como insalubre e asquerosa, que permite entender alguns pontos obscuros da evolução humana. Agora sim, depois de tudo explicado há que olhar qualquer fotografia do gênero com outros olhos.
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Comentários
Encantadora a matéria e esplêndida a informação. Estava procurando por imagem de "vacas magras" para ilustrar um assunto num e-mail a meu pai (coisas de filho) e deparei com a foto dentre tantas outras, e que me deixou intrigado. Abri a imagem para ver se eu estava vendo direito ou se minha mente estava preconceituando a cena ou não entendendo de fato do que se tratava, já que em se tratando de fotos antigas e principalmente com povos tribais africanos espera-se de tudo.
Abri o site mdig e li a matéria. Estou estupefato e encantado com esse conhecimento trazido a mim acidentalmente.
Vou compartilhar essa informação e este site, pois outras pessoas precisam amadurecer o conhecimento, hoje em dia tão fútil.
Obrigado pela oportunidade!
Pelo menos de certa forma a tecnica funcionava. Diferente do que é praticado hoje em dia com o nome de homeopatia, que eh apenas um wishful thinking.
Granjas de vacas... huehuehue... eu quis dizer fazendas, enfim...
Então, no lugar de soprar, eles podiam estimular as úberes... Ainda fazem isso nas granjas...
No campo, tem nego que faz coisa bem pior que soprar lá.... :lol:
doidera mew =S
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procura outra coisa :# <=[ <:)
Quando eu penso que já lí tudo sobre cultura inútil na vida me deparo com isso... que bom, sinal que nunca vai faltar oq descobrir.
Creio que não e sim, respectivamente, Evelyn. Pelo menos lembro que antigamente, na falta de um macho para cobertura, a inserção de um novo bezerro de outra mãe, quando o próprio desmamava, estendia o período de lactação. Na atualidade isso não é muito feito, assim que possível o bezerro é desmamado. A partir daí a vaca é estimulada através da ordenha manual ou mecânica para seguir produzindo leite por um período que vai se estender até pouco tempo antes do nascimento da próxima cria. Em geral, o feto exige uma maior quantidade de proteínas nos dois últimos meses da gestação, proteínas estas que não devem ser desperdiçadas na produção de leite.
Abraços fraternos
Vaca não dá leite o ano inteiro? :?
Então para que servem aqueles hormonios nos alimentos que fazem dar leite? :?
Ah sim, esqueci de perguntar. Isso pode machucar a vaca? E funciona?
Ahn... vivendo e aprendendo, né?
Só achei o texto meio... não linear demais. Tipo, fala dos dias de hoje, daí antigamente, daí volta pros dias de hoje, daí volta pra antes...
Talvez seja só um gosto meu, mas acho mais fácil entender textos que, mesmo tendo uma introdução de um fato contemporâneo, continuam falando do fato em uma ordem cronológica.
Interessante.
A história é cheia de pontos obscuros interessantes.