Propagandeado como o "filme mais perigoso já realizado" no cinema, o longa-metragem "Roar" deveria ser o depoimento do amor pelos animais da família formada por Noel Marshall, produtor de "Exorcista", sua esposa Tippi Hedren, a atriz preferida de Hitchcock e protagonista do clássico do suspense "Pássaros", e os filhos de ambos, uma ainda adolescente Melanie Griffith e os jovens John e Jerry Marshall que interpretavam a si mesmos no que era, em realidade, uma obra de ficção de sua própria vida, que precisou de 11 anos para ser finalizado. |
Criado com a intenção de conscientizar a sociedade contra a extinção de leões, tigres e grandes felinos, o filme acabou se tornando um verdadeiro pesadelo pelos constantes ataques dos animais que colocavam em perigo a vida de atores e membros da equipe. Aconteceu um incêndio, uma inundação, Noel Marshall quase morreu por gangrena, Tippi Hedren quebrou a perna ao cair de um elefante e Melanie teve que fazer uma cirurgia estética reconstrutiva no rosto depois de uma patada de leão.
O resultado, como dá para imaginar foi uma calamidade econômica que quase arruinou os implicados e que acabou sentenciando o fim do casamento de Noel e Tippi. Mas como costuma ocorrer com os fracassos de proporções épicas, há uma história arrebatadora por trás de tudo que vale a pena contar.
A casa ocupada por leões
Melanie e Tippi durante um ato público durante a promoção do filme em 1981. Via: El Mundo
Tudo começou com uma temporada na África em 1969. Enquanto rodava ali "Satan's Harvest", Tippi e seu marido Noel -naquela época agente de artistas- descobriram uma casa abandonada em Moçambique que estava completamente tomada por 30 leões que fizeram do local o seu lar.
Impressionados pela imagem, começaram a pensar na ideia de fazer um filme sobre uma família que compartilhava a casa com grandes felinos. Grandes amantes dos animais, viam no projeto a oportunidade de ajudar à preservação dessas espécies ameaçadas e de demonstrar que animais selvagens e humanos podiam conviver sem problemas.
Aprendendo a conviver com o Leão Neil
Tippi Hedren em sua piscina, aspergindo água em Neil. Via: Time
Um treinador de animais para filmes de Los Angeles, chamado Rum Oxley, convenceu o casal de que se quisessem trabalhar com leões, tigres e panteras, deviam se familiarizar antes com seu comportamento e se ofereceu para levar Neil, um leão, que ele alugava para publicidade na televisão, para passar um tempo na mansão da família até que se adaptassem e pudessem coabitar em paz e harmonia. Noel e Tippi, aceitaram entusiasmados.
Como depoimento daquela convivência restou uma sessão de fotos da revista Life, publicada em 1971, cuja reportagem segue sendo uma das mais interessantes jamais feitas de estrelas de cinema. Beleza e realeza selvagem dão-se a mão em imagens indubitavelmente glamourosas, como a de Tippi Hedren utilizando a melena do leão como almofada para ler o jornal ou de Noel tentando trabalhar enquanto Neil ruge em sua cara.
Talvez as fotos mais impressionantes sejam as protagonizadas pelas crianças da família: um dos filhos de Marshall ri ante o "abraço" do leão que poderia lhe despedaçar em segundos, e uma Melanie Griffith de catorze anos divide a cama com Neil, sob um cobertor, igual outras meninas de sua idade compartilham leito com cães ou gatos. Se alguma vez alguém desejar saber o verdadeiro significado da expressão "filho de Hollywood", Melanie deveria ser a resposta.
A vida com Neil decorreu sem mais sobressaltos e riscos -obviando o próprio risco de compartilhar a casa com um animal selvagem de 180 quilos, lógico- mas quando começaram a chegar novas feras à casa, resgatadas de outros proprietários que não podiam cuidá-las ou as maltratavam, surgiram os conflitos e as queixas dos vizinhos.
Como solução, transladaram aos animais à reserva Shambala que estabeleceram no deserto de Mojave, lugar para o qual pouco tempo depois se mudaria a família inteira e onde foi rodado a maior parte de "Roar". Entravam assim, em um ouroboros maluco, rodando um filme sobre a vida real que havia sido criado para rodar precisamente esse filme.
O roteiro do filme e os ataques dos animais
O argumento do filme não poderia ser mais simples: Marshall, que também dirigia o filme, interpretava Hank, um zoológo que vive em uma reserva africana rodeado de grandes felinos. Um dia chegam sua esposa e filhos dos Estados Unidos para visitá-lo, só que ele não está em casa e os animais decidem atacar os convidados em uma amostra de descortesia imperdoável.
O problema é que os ataques acabaram sendo reais. Com 150 animais pululando pelo set de filmagem, mantê-los sob controle era uma tarefa impossível. O que devia ser seis meses de filmagens se estendeu por absurdos cinco anos, que se alongaram a onze contando toda a produção. Todos os membros do elenco, menos um -o ator que interpretava Mativo, também chamado Mativo-, foram atacados, e o mesmo aconteceu com a equipe do filme. Ao todo setenta pessoas ficaram feridas.
- "Parece pouco. Acho que foram cerca de 100", declararia John Marshall mais tarde, que teve que levar 56 pontos de sutura. Mas foi superado pelo diretor de fotografia Jan de Bont, com os 120 pontos na cabeça recebidos depois de uma mordiscada de um leão.
Jan de Bont foi praticamente escalpelado por um leão
A fotografia de "Roar" é uma experiência curiosa. Noel Marshall aparece pilotando sua motocicleta entre animais selvagens, como décadas depois fariam em "Jurassic World" com os velociraptors, só que ali os predadores não eram criados por computador. Em outra cena ele brinca com um grupo de leoas até que começa a brotar sangue de sua mão, que não é sangue cinematográfico.
Marshall terminou com tantas mordidas (algumas filmadas, outras não) que ele eventualmente desenvolveu gangrena. O diretor precisou ser hospitalizado por seis meses devido à condição, bem como as múltiplas lesões nas pernas que ele sofreu depois que um leão o arrastou pelo set. Levou anos para se recuperar.
A filha adolescente de Tippi Hedren, Melanie Griffith, acabou sendo criada em "Roar", e a experiência também foi traumática para ela. Na verdade, chegou a determinado ponto que ela acabou desistindo do projeto, dizendo que não queria acabar com "meio rosto". Mas voltou, apenas para ser atacada com a patada de um leão. Melanie precisou fazer uma cirurgia reconstrutiva facial para corrigir o dano.
Hedren também teve sua justa parcela de abuso durante a produção. Ela desenvolveu gangrena depois que Timbo o elefante esmagou sua perna contra o tronco de uma árvore. Foi mordida na parte de trás da cabeça por um leão. Além disso, ela quebrou a perna e necessitou de enxertos de pele depois de ser jogada por Timbo quando montava nele em uma das cenas que pode ser vista no filme.
O filho de Noel Marshall, John, atuou em "Roar" e realizou muitas outras tarefas na produção. Ele também não escapou ileso dos felinos. Em um dos incidentes mais horríveis, um leão macho atarracou a sua cabeça e foram necessários seis homens durante 25 minutos para removê-lo do alcance do leão. No final, ele recebeu 56 pontos.
Curiosamente John foi o único membro da família que se mostrou disposto a promover "Roar" durante seu relançamento em 2015, mas ele disse que até hoje tem pesadelos com as filmagens.
- "Não me interpretem mal, foi um tempo maravilhoso. Mas não dá para dizer que não foi estúpido", admitiu ele. John também mostra um certo ressentimento com seu pai: - "Papai foi um verdadeiro pau no cu por fazer isso com toda a a família".
O divertido filme da "Família e seus Bichos" que se tornou um verdadeiro thriller
A tela, em cada momento, está sempre cheia de felinos e a casa em que foi realizado o filme fica tão invadida pelos leões como estava a cabana abandonada de Moçambique que inspirou Marshall e Tippi a fazerem o longa-metragem. Só que ali havia mais de cem pessoas trabalhando com câmeras e equipamentos de som entre animais selvagens que lambiam, arranhavam e mordiam.
Marshall pretendia fazer um filme divertido para toda a família e acabou resultando uma estranha e crua amostra da dureza da vida selvagem. Cenas em teoria divertidas como uma em que um leão mete seus afiados dentes em um tênis, enquanto as crianças brincam ao lado, se tornam terríveis momentos de suspense quando o espectador fica consciente de que o animal pode fazer o mesmo com os protagonistas.
Há primeiríssimos planos dos animais, desses que hoje só são feitos pelos documentários da Nat Geo com câmeras de grande precisão. Ainda que a obra seja farta de beleza a sensação de perigo é constante, as mandíbulas das feras estão ensanguentadas de verdade e quando vemos Melanie Griffith com a cara prensada sob a garra de um leão sabemos que essa é a ferida que lhe valeu uma cirurgia. É um desastre do qual é impossível afastar os olhos.
O set de filmagens quase foi destruído por incêndios e enchentes
"Roar" não foi o filme mais perigoso a ser realizado apenas pela presença dos animais. Filmado em Soledad Canyon, a cerca de 70 quilômetros ao norte de Los Angeles, as locações da gravação foram quase totalmente destruídas com dois incêndios florestais e uma inundação antes do fim da produção. O dilúvio matou uma série de leões, enlameou o local e arrastou equipamentos completos de filmagem. Vários leões também escaparam durante a enchente, o que levou três deles a serem alvejados pela polícia antes que alcançassem a civilização.
Esses desastres naturais acabaram por atrasar a realização do filme e encareceram ainda mais a produção, que teve que repor todo o material avaliado em milhões de dólares.
O cancelamento da estreia e o fiasco nas bilheterias
Quando por fim terminou em 1981, Roar resultou ser um fracasso comercial estrepitoso. Com um orçamento disparatado de mais de 17 milhões de dólares, o filme nem sequer chegou a estrear nos Estados Unidos por problemas legais de distribuição e na Europa só arrecadou dois milhões.
- "É o vídeo de férias familiares mais caro jamais rodado", caçoaram os críticos. Esse vídeo de férias acabou custando todo o dinheiro que Noel ganhara produzindo o "Exorcista". No ano seguinte ele e Tippi terminavam seu casamento de 18 anos, incapazes de superar a tensão de um filme tão conflitante.
Os conspiranoicos da época falaram inclusive da maldição do "Exorcista", que arrastaria em maior ou menor medida todos os que tiveram alguma ligação com o bem sucedido filme de possessão diabólica. Noel Marshall não voltaria a dirigir nenhum filme, e sua carreira como produtor se limitou a um filme a mais, protagonizado por um River Phoenix adolescente em 88.
A estreia nos Estados Unidos em 2015
No final de 2014, James Shapiro, que se dedica a relançar filmes que, segundo ele, "se perderam no tempo e que agora estão mais condizentes com a época", descobriu "Roar":
- "Eu não posso acreditar que exista este filme", foi a primeira reação de James. - "É como assistir um live-action de "O Rei Leão" com Mufasa segurando uma navalha contra a sua garganta".
Foi assim que em 2015 "Roar" finalmente estreou nos Estados Unidos pela mão da revendedora independente de Shapiro que utilizou o inferno das filmagens para promovê-lo:
- "Nenhum animal foi maltratado durante as gravações deste filme. 70 membros do elenco e da equipe foram", foi sua frase promocional, impressa sobre imagens de vítimas dos ataques.
A estratégia certificava que, de uma distorcida maneira, "Roar" entrou para a história do cinema, ainda que com o pouco louvável rótulo de "filme mais perigoso jamais rodado". Mas o filme acabou não decolando de novo.
Hoje "Roar" se tornou um filme "cult" e é reverenciado como uma loucura fascinante que se originou de um empenho férreo cheio de ingenuidade, baseado na crença de que um monte de animais selvagens podiam se comportar como ternos animais de pelúcia ou estimação. Curiosamente também serviu como modelo de estudos zootécnicos de como fazer e o que não para a melhor adequação de felinos selvagens que vivem em cativeiro.
Tippi Hedren confessa que se arrependeu de ter colocado um leão dentro de sua casa arriscando as vidas de sua filha e os filhos de seu então marido. A estrela, já octogenária, segue vivendo no santuário para grandes felinos Shambala, agora centrado em resgatar animais de zoos e circos.
Tippi declara ser radicalmente contra a criação de animais selvagens como domésticos, mesmo quando esses já não podem mais ser reintroduzidos em seu habitat natural. Seu santuário é bancado com o dinheiro de uma fundação criada por ela mesma. E qual o nome de sua fundação? Não poderia ser de outra maneira: Roar.
Fonte: Ranker via dica do amigo Rusmea, do ótimo Curionautas.
O MDig precisa de sua ajuda.
Por favor, apóie o MDig com o valor que você puder e isso leva apenas um minuto. Obrigado!
Meios de fazer a sua contribuição:
- Faça um doação pelo Paypal clicando no seguinte link: Apoiar o MDig.
- Seja nosso patrão no Patreon clicando no seguinte link: Patreon do MDig.
- Pix MDig ID: c048e5ac-0172-45ed-b26a-910f9f4b1d0a
- Depósito direto em conta corrente do Banco do Brasil: Agência: 3543-2 / Conta corrente: 17364-9
- Depósito direto em conta corrente da Caixa Econômica: Agência: 1637 / Conta corrente: 000835148057-4 / Operação: 1288
Faça o seu comentário
Comentários
GOSTARIA DE COMPLAR ESTE FILME