Depois da Guerra Fria e após a dissolução da União Soviética, em 1991, tornaram-se públicos alguns documentos onde propunham a Stalin enviar cerca de dois milhões de pessoas a Sibéria para criar "assentamentos especiais". A realidade é que as únicas pessoas enviadas a uma das regiões mais inóspitas do planeta eram aquelas consideradas indesejáveis pelo regime de um dos maiores facínoras e assassinos da história humana. Isto foi o que ocorreu. |
Em fevereiro de 1933, Genrikh Yagoda, chefe da polícia secreta de OGPU, e Matvei Berman, chefe do sistema de campos de trabalho do Gulag, propuseram um autodenominado "plano grandioso" a Joseph Stalin, então Secretário Geral da União Soviética.
A ideia consistia em restabelecer-se. Como? Enviando essas 2.000.000 de pessoas a Sibéria e Cazaquistão em assentamentos especiais. Os deportados, ou "colonos", como preferiam eufemizá-los, deviam pôr em produção mais de um milhão de hectares de terras virgens nas regiões escassamente povoadas (e geladas), transformando-se em última instância em auto-suficientes em um período de dois anos.
Em realidade, o plano de Yagoda e Berman era uma versão de algo que já haviam feito no passado, mas diferente desse, agora os recursos disponíveis para apoiar semelhante ideia eram gravemente limitados pela fome em curso em toda a União Soviética. Apesar disso, o novo plano foi aprovado no Conselho Soviético em 11 de março de 1933.
Pouco depois da aprovação do mesmo, o número de possíveis deportados foi reduzido a 1.000.000. Passaram os meses e quando realmente chegou o momento de colocar o plano em prática, as autoridades soviéticas reuniram 25.000 pessoas e as enviaram a Tomsk, na Sibéria.
Os deportados eram principalmente os considerados como elementos socialmente daninhos, isto é, antigos mercadores e comerciantes, camponeses que tinham fugido da fome no campo, pequenos delinquentes ou qualquer um que não se encaixava na estrutura de classes comunista idealizada da época. Também, por suposto, opositores políticos no exército ou no próprio Partido Comunista.
Como com seus antecedentes, não emitiram passaportes, de forma que poderiam ser presos e deportados das cidades após um procedimento administrativo simples. A maioria dos presos foi deportada em um período de dois dias, entre março e julho de 1933.
Segundo o plano de Yagoda e Berman, os deportados passariam por campos de trânsito em Tomsk, Omsk e Achinsk. O maior acampamento estava em Tomsk, que teve que ser reconstruído desde o zero para alojar os 25.000 deportados que chegaram em abril apesar de que o acampamento não estava programado para ser finalizado até o 1° de maio.
O transporte fluvial aos campos de trabalho finais foi fechado até que o gelo nos rios Ob e Tom cedeu. A maioria dos primeiros a chegar foram kulaks e trabalhadores agrícolas, junto a pessoas de cidades do sul da Rússia. A chegada de tanta gente de uma vez só aterrorizou as autoridades de Tomsk, que viram-nos como famintos e contagiosos.
Depois, em maio de 1933, escolheram 5.000 para seguir viagem em uma barcaça à ilha Nazino, a uns 600 quilômetros ao norte de Tomsk. Os "colonos" foram enviados ali sem ferramentas, refúgio, roupa ou comida. De fato, a única provisão que receberam para sua nova vida na remota ilha da Sibéria foi farinha, ainda que não lhes deram nenhum utensílio para beneficiá-la ou cozinhá-la.
A ilha canibal
Quando chegaram à ilha, 27 pessoas já tinham morrido. Perto de 300 pessoas não sobreviveram à primeira noite de nevasca. Quando os sobreviventes acordaram no dia seguinte, muitos se deram conta do horror da situação, da realidade da inanição.
Supostamente a ilha deveria ser um campo de trabalho onde os deportados poderiam se manter enquanto ajudavam a cultivar as terras nos bosques que rodeavam a ilha. No entanto, às autoridades responsáveis pelo campo de trabalho não forneceram nenhuma ferramenta, o que significava que os prisioneiros foram essencialmente largados na ilha até que seus captores pudessem averiguar o que fazer com eles.
A ilha em si era um pântano desabitado sem nenhuma edificação. Isto significava que os milhares de prisioneiros apinhados em tão só 500 metros de largura e menos de 3.000 metros de comprimento não tinham onde se refugiar das inclemências do tempo (lembrem que estamos falando da Sibéria). Para piorar ainda mais a situação, em 27 de maio levaram à ilha outros 1.200 prisioneiros.
Um grupo de
Não tinha nada que comer em Nazino, de modo que as autoridades começaram a enviar mais farinha. Ocorreu que na primeira manhã que tentaram levá-la, os prisioneiros famintos atropelaram os soldados que tentavam em vão entregá-la. Estes, por sua vez, começaram a disparar contra a multidão. No dia seguinte, o processo se repetiu, e foi o momento em que as autoridades decidiram que os prisioneiros escolhessem alguns responsáveis para coletar a farinha da beira do rio.
Mas como costuma ocorrer em situações desesperadas, os encarregados, normalmente pequenos delinquentes, acumularam a comida e exigiram um pagamento da mesma a quem quisesse se alimentar. Sem fornos para fazer pão, os prisioneiros que recebiam a farinha tinham como único recurso misturá-la com água do rio e comiam aquele pirão cru, o que levou à grande maioria à disenteria.
Em poucas semanas, as pessoas começaram a morrer como moscas. A ilha logo mergulhou no caos e na anarquia. Com tão pouco alimento para tanta gente e em uma região perdida do planeta, onde não existia lei para proteger os mais débeis, os prisioneiros começaram a assassinar uns aos outros. Inclusive muitos recorreram ao canibalismo. Tal e qual contou uma testemunha faz alguns anos; as cenas foram estarrecedoras:
"Na ilha tinha um guarda chamado Kostia Venikov, um jovem muito consciencioso. Ele estava cortejando uma garota bonita que fora enviada para ali. Ele a protegia. Certo dia ele teve que se ausentar por um tempo e alguns prisioneiros pegaram a garota, amarraram-na a uma árvore, cortaram seus seios, músculos, tudo o que puderam comer, tudo... Tinham tanta fome, tinham que comer. Quando Kostia voltou, a garota ainda estava agonizando. Tentou salvá-la, mas tinha perdido sangue demais."
Os deportados, desesperados, começaram a construir balsas para tentar fugir daquela loucura. No entanto, as balsas afundavam quase de imediato. Os que estavam a bordo normalmente se afogavam em sua tentativa de escapar, e centenas de cadáveres começaram a chegar à costa de Nazino. Qualquer um que tentou sair daquele inferno pereceu no deserto implacável da Sibéria ou foi caçado pelos guardas por puro esporte.
Das 6.000 pessoas que finalmente foram enviadas à ilha, só 2.000 sobreviveram. Em um período de algumas poucas semanas, entre 1.500 e 2.000 pessoas morreram por inanição, doença, assassinato ou morte acidental. Outros 2.000 "colonos" desapareceram e seu paradeiro nunca foi encontrado, pelo que presumiram que estavam mortos.
O execrável sanguinário Josef Vissariónovitch Stalin.
No mês de julho os poucos sobreviventes foram enviados a um campo de trabalho próximo, onde muitos mais sucumbiram às duras condições. Em última instância, foram só uma pequena parte do grande número de colonos que morreram durante as purgas que Stalin realizou a qualquer que considerasse uma ameaça para o regime.
Os acontecimentos que ocorreram na Ilha Nazino destacaram os problemas dos projetos de colonização soviética, e os líderes começaram a duvidar de sua qualidade e eficiência. De fato, a ilha conduziu diretamente ao final dos planos de assentamentos em grande escala na União Soviética.
No final de 1933, os eventos na ilha pareciam ter-se apagado da memória de todos, em grande parte, porque não se tornaram de conhecimento público, e só um pequeno número de sobreviventes, funcionários públicos e testemunhas presenciais sabiam a verdade, mas permaneceram calados porque tinham amor a vida.
Foram necessárias décadas até que em 1988 os detalhes da purga foram colocadas a disposição do público através dos esforços do grupo de direitos humanos Memorial.
Então o mundo soube que os primeiros relatórios de canibalismo vieram da ilha apenas 3 dias depois que os deportados desembarcaram. No entanto, as autoridades soviéticas continuaram deixando mais pessoas na ilha, inclusive sabendo o nível de doença e fome.
Um grupo de
Os relatórios posteriores dos sobreviventes encontram-se entre os mais horríveis e terríveis do episódio durante todo o mandato da União Soviética, mas contam praticamente nada de toda a carnificina. Os historiadores que tentaram contar o número de vítimas sob o regime de Stalin foram obrigados a depender em grande parte de histórias contadas de boca a boca e as estimativas variam entre 5 a 25 milhões. Só para ter uma idéia, comparativamente seria como extinguir toda a população da Austrália ou de Minas Gerais, atualmente.
Para entender esta hecatombe, as evidências e registros dos arquivos soviéticos contabilizam em torno de 800.000 presos executados por delitos políticos, 1,7 milhões de mortos em gulags e quase 400 mil pessoas perderam a vida nos reassentamentos forçados.
No entanto, os pesquisadores mais otimistas estimam que o número de vítimas das repressões de Stalin beiram um total de 5 milhões, mas há outras vozes que afirmam que este número deve ser no mínimo multiplicado por 5. O escritor e historiador russo Vadim Erlikman, por exemplo, estima 1,5 milhões de execuções, 5 milhões de mortos nos gulags, 7,5 milhões de deportados e 1 milhão de prisioneiros de guerra, mais 8 milhões de vítimas da fome de 1932-1933.
Foram estas as maravilhas do socialismo/comunismo levados à perfeita prática e, se alguém achar que esta asseveração é tendenciosa, basta lembrar uma frase atribuída ao próprio Stalin.
- "A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística."
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