Por isso, em Iacutusque, capital da região da Iacútia, na Sibéria Oriental, os simpáticos habitantes locais alertam turistas contra o uso de óculos ao ar livre. A cidade remota, com uma população de 200.000 habitantes, é famosa por, de maneira convincente, reivindicar ser a cidade mais fria do planeta. Seus habitantes dizem que o frio chega mesmo quando os termômetros marcam 50 ºC negativos, e uma corrida rápida até a loja da esquina pode terminar em congelamento.
Em janeiro, o mês mais gelado, as "máximas" médias estão em torno de -40 ºC; deixando a cidade envolta em um manto opressor de névoa congelante que restringe a visibilidade a 10 metros. Moradores vestidos com peles correm por uma praça central onde uma estátua de um Lênin, com um braço erguido e apontando para a frente, permanece completamente imperturbável pelo frio.
No jargão local, temperaturas em torno de -40 °C são descritas como "frias, mas não muito frias". De fato, a Rússia é abundante em regiões que podem ser chamadas de muito grandes, muito remotas e muito frias, mas Iacutusque pode cerejar facilmente o bolo (congelado). O frio é extremo, mesmo para os padrões siberianos. No entanto, 2020 também tinha uma surpresa para a região ao registrar temperaturas tão altas quanto 38 ºC, a temperatura mais alta já registrada ao norte do Círculo Polar Ártico;
A Iacútia cobre mais de um milhão e meio de quilômetros quadrados, mas é o lar de menos de um milhão de pessoas. A densidade populacional é baixa, possui poucas cidades grandes e é dividida em unidades administrativas, com centros regionais individuais que são pouco mais do que aldeias.
Os moradores afirmam que existem lagos e rios suficientes na região para que cada habitante tenha um, e gostam de se gabar de que a região contém todos os elementos da tabela periódica. Segundo a lenda local, o deus da criação estava voando ao redor do mundo para distribuir riquezas e recursos naturais, mas quando chegou na Iacútia ficou com tanto frio que suas mãos ficaram dormentes e ele largou tudo.
O afastamento de Iacutusque também é extraordinário. Fica a seis fusos horários de Moscou e, há dois séculos, levaria mais de três meses para viajar entre as duas cidades. Agora, leva apenas seis horas de avião, mas as passagens não são muito baratas: em torno de uns 3.700 reais, uma quantia enorme em um país onde o salário médio é de 1.800 reais por mês. Não há ferrovia em Iacutusque. As outras opções são um passeio de barco de 1.600 quilômetros subindo o rio Lena durante os poucos meses do ano quando ele não está congelado, ou a "Rodovia dos Ossos".
A estrada, construída por presidiários do gulag, muitos dos quais morreram no processo, percorre 2.000 quilômetros até Magadan, no Pacífico. Só é totalmente transponível no inverno, quando os rios congelam. Ela é usada principalmente por caminhoneiros que levam suprimentos para aldeias remotas. Eles não desligam os motores durante as duas semanas de viagem e geralmente partem aos pares: quebrar na estrada pouco usada pode significar a morte quase certa.
Em Iacutusque, a maioria dos carros são importados do Japão, de segunda mão; aparentemente, eles lidam com o frio melhor do que Ladas e outros veículos russos tradicionais. Ainda assim, os habitantes locais costumam deixar os motores funcionando se tiverem que parar por meia hora, e alguns os deixam ligados o dia todo durante o trabalho para impedir que apague e não ligue mais.
A região foi conquistada pela primeira vez pelos russos na década de 1630, e Iacutusque foi estabelecida como um pequeno centro administrativo. Os Yakuts nativos, uma tribo turca com características asiáticas que falam uma língua cheia de vogais guturais, estavam engajados no pastoreio de renas. Eles concordaram com o domínio russo sem muita luta. Mesmo hoje, os yakuts representam cerca de 40% da população local, e a maioria ainda é fluente em sua língua, embora a industrialização e a coletivização durante os anos soviéticos fez com que poucos ainda mantenham um estilo de vida nômade.
Até a Revolução Russa de 1917, Iacutusque permaneceu um posto avançado provincial insignificante. No século 19, foi usada, como muitas cidades da Sibéria, como uma prisão aberta para dissidentes políticos. Junto com seu fascínio misterioso e vastos recursos naturais, as conotações de prisão sempre deram à Sibéria a reputação de um lugar sombrio e miserável, não apenas entre os estrangeiros, mas também entre os russos.
Anton Chekhov, em sua jornada pela Sibéria em 1890, pintou um quadro sombrio da vida dos prisioneiros ali mantidos.
- "Eles perderam todo o calor que antes tinham", escreveu Chekhov sobre um grupo de homens que encontrou na Sibéria Ocidental. - "As únicas coisas que permanecem na vida para eles [são] vodca, putas, mais putas, mais vodca ... Eles não são mais seres humanos, mas bestas selvagens."
A região é rica em ouro e diamantes, o que está por trás da decisão dos soviéticos de transformar Iacutusque em um grande centro regional, primeiro usando o sistema de trabalho gulag, e depois com o reassentamento de milhares de voluntários em busca de aventura, salários mais altos e o chance de construir o socialismo no gelo. A gigante corporativa Alrosa, que detém o monopólio dos diamantes da Rússia, está sediada na região e é responsável por 20% do suprimento mundial de diamantes em bruto.
Com o tempo, Iacutusque se transformou em uma cidade real com hotéis, cinemas, uma casa de ópera, universidades, um serviço de entrega de pizza e até um zoológico. As temperaturas desumanas e a cobertura de névoa do inverno são apenas parte da vida diária de seus residentes resistentes, que sabem como lidar com o frio. O mercado ao ar livre é uma instalação emblemática cheia de comerciantes vendendo peixes congelados, carne de porco e de cavalo.
Surpreendentemente, um estudo realizado por médicos britânicos e russos no final da década de 1990 descobriu que, enquanto na Grã-Bretanha o número de pessoas relatando doenças aumenta durante os meses de inverno, em Iacutusque isso não acontece. O estudo concluiu que isso acontecia porque as pessoas não saíam no inverno a menos que fosse absolutamente necessário e, se o faziam, vestiam-se adequadamente.
Quase sem exceção, as mulheres usam pele da cabeça aos pés, grande parte produzida localmente. Em tal clima, a ética conta pouco, porque ali você precisa usar pele aqui para sobreviver. Nada mais o mantém mais aquecido. Um casaco de pele decente pode custar de várias centenas a vários milhares de reais, mas é visto como um bom investimento e algo para ser usado ano após ano, por muitos anos. Também populares são as versões locais de valenki, as botas de pele comuns na Rússia.
Alguns acadêmicos ocidentais dizem que a própria existência de lugares como Iacutusque, construídos em um terreno que simplesmente não é destinado à habitação humana, é absurda. Mas a maioria dos residentes de Iacutusque não planeja ir a lugar nenhum tão cedo e também não quer muito mais do que já tem. Para os Yakuts étnicos, é seu lar por séculos, e aqueles que vieram em busca de dinheiro e aventura na era soviética criaram raízes.
Nessas condições, a comida tradicional da Iacutia sempre fez uso de tudo o que podia. As coisas estão um pouco mais saborosas e vistosas hoje em dia, embora o cavalo ainda tenha destaque nos cardápios dos restaurantes. Ser um cavalo iacutiano não parece muito divertido: você é criado em temperaturas terrivelmente frias até ter idade suficiente para ser abatido e transformado em fatias finas de bife de potro ou fatias de fígado de cavalo cru com especiarias.
Outras iguarias incluem carne de rena marinada e fatias semi-congeladas de peixes crus, uma espécie de sushi iacutiano. Dizem que este último é extremamente saboroso e faz uma boa zakuska, um tira-gosto para mordiscar depois de engolir uma boa dose de vodca. E depois de algumas doses de vodca, as fatias de carne de potro também já não têm um gosto tão ruim.
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Comentários
Sensacional
Imagina sentar pra cagar num lugar desse! Se você vacila, a pele do rabo gruda no vaso!
Fiquei impressionado com a propagação do som em ar tão frio/denso. Dá pra ouvir cada movimento, inclusive os mais distantes, interessante!