Em 1936, um adolescente alemão com talento para salto em altura foi recrutado pelo Partido Nazista e recebeu uma tarefa incomum: fingir ser uma garota. Foi dito a Heinrich Ratjen que ele deveria adotar um gênero e identidade totalmente novos para levar glória aos nazistas. Por vários anos, Heinrich assumiu essa missão, ganhando medalhas destinadas a mulheres. Uma vez que sua tarefa foi concluída, ele desapareceu do esporte e retornou à vida como um homem. Esta é a história que faz parte de todas as listas de trapaças do esporte mundial. Só que tem um detalhe: ela é falsa. |
A história de Heinrich ainda é citada hoje como um dos poucos exemplos de uma "forma particularmente nefasta de trapaça". O problema é que não foi isso que aconteceu. Heinrich não era um "homem disfarçado". Seu nome era realmente Dora e, de fato, fraudes de gênero provavelmente nunca foram realmente a inspiração para políticas de testes de sexo.
Dora Ratjen nasceu em 1918, no norte da Alemanha. Como a maioria das crianças naquela área na época, ela nasceu em casa com a ajuda de uma parteira. De acordo com os registros policiais, a parteira declarou que o bebê era uma menina e os pais acreditaram em sua palavra, chamando a criança de Dora. Por anos, ela viveu como uma menina, frequentou escolas de meninas, usou roupas de meninas e nunca pensou nada sobre isso.
Por volta dos 12 anos, Dora contou mais tarde, começou a sentir mudanças em seu corpo e começou a questionar sua identidade de gênero. Conforme ela ficava mais velha, ela se envolveu em esportes femininos e disse que mesmo que sua voz tenha engrossado e foi provocado por suas colegas esportivas, ninguém nunca realmente a acusou de ser um homem disfarçado.
Nas Olimpíadas de Berlim de 1936, Dora, então com 17 anos, competiu pela Alemanha, ficando em quarto lugar. Em 1938, Dora quebrou o recorde mundial no salto em altura feminino no Campeonato Europeu Feminino em Viena. E ela teria potencialmente vivido muitos mais anos de sua vida como uma mulher se não fosse por um encontro com a polícia no caminho para casa daquele evento em Viena, quando duas mulheres ligaram para as autoridades para relatar que viram alguém no trem que acreditavam ser um homem com roupas femininas.
A polícia levou Dora para a delegacia e, no decorrer da conversa, ela admitiu a eles que estava quase feliz por ter sido notada e levada. O relatório policial, que agora está disponível no Arquivo Nacional Alemão e foi descoberto pelo repórter Stefan Berg do Der Speigel em uma exposição de 2009, diz que Dora não ousou se revelar aos seus pais ou a qualquer outra pessoa por um sentimento de vergonha. Ela disse à polícia que há muito não tinha certeza se era mulher, mas não sabia para quem pedir ajuda. Ela estava feliz que tudo tinha chegado a um ponto crítico, porque agora ele seria potencialmente capaz de viver como um homem, afinal.
Como esta era a Alemanha em 1938, Dora disse que estava preocupada que seria associada a uma grande desgraça aos olhos do mundo se começasse a viver como um homem. Mas o partido nazista tinha um interesse pessoal em minimizar esse tipo de escândalo em torno de uma de suas atletas femininas estrelas. O documento policial sumário sugere que a polícia trabalhou com a Autoridade Esportiva do Reich para ajudar Dora a virar Heinrich e desaparecer sem se tornar uma notícia internacional.
A história de Dora/Heinrich foi coberta em jornais alemães na época, mas apenas superficialmente. Mais tarde naquele ano, um artigo em um jornal alemão relatou que com base em um exame médico, foi determinado que Dora Ratjen não podia mais ser admitida em competições femininas, sem entrar em detalhes.
O caso permaneceu tabu em público depois que alguns jornais diários noticiaram a desqualificação de Dora. Em 12 de outubro de 1938, foi emitida uma instrução à imprensa de que "nada mais deveria ser publicado sobre Dora Ratjen".
Dora perdeu seu título de campeonato e quatro recordes mundiais. O Departamento de Atletismo do Reich (precursor da Associação Alemã de Atletismo) retirou o direito de Dora de competir em competições internacionais. O motivo oficial foi "violação do Estatuto do Amador". Com base nas informações disponíveis, parece que a exclusão de Dora do esporte feminino não foi notada fora da Alemanha. Foi assim que em 11 de janeiro de 1939, um tribunal alemão declarou que Dora era legalmente Heinrich.
O pai de Ratjen inicialmente resistiu ao fato de Dora ser um homem. Ele inicialmente se recusou a que ela mudasse de nome e declarou que em hipótese alguma Dora deveria usar roupas masculinas. Em hipótese alguma ele toleraria que Dora assumisse uma profissão masculina. Foi assim que em 11 de janeiro de 1939, o gênero de Ratjen foi alterado nos documentos oficiais e seu primeiro nome foi alterado para Heinrich.
Em 10 de março de 1939, o Ministério Público de Magdeburg encerrou a investigação contra Heinrich, que recebeu um novo "trabalho", documentos, cartão de invalidez e carteira de membro da Frente Trabalhista Alemã. Para separá-lo de sua família, ele foi transferido em 1º de outubro de 1939 para o Serviço de Trabalho do Reich em Hanover. Cinco meses depois, a Segunda Guerra Mundial estouraria, e o drama esportivo ficaria em segundo plano e Heinrich serviu como soldado raso.
A única declaração que Heinrich fez à imprensa vem de uma história de 1957 no tabloide britânico Sunday People. Nela, Heinrich supostamente admite ter sido forçado a falsificar sua identidade feminina para os nazistas. Mas há motivos para ser cético em relação a este artigo. As citações e detalhes de Heinrich não se alinham com todas as outras evidências disponíveis do relatório policial. Outras citações parecem boas demais para ser verdade.
- "Quando você olha para trás, é bobo pensar nas coisas que nós, jovens nazistas tolos, costumávamos fazer", ele supostamente disse.
Na época, o Sunday People era supervisionado por um editor chamado Stuart Campbell, um biltre que fazia qualquer coisa para vender jornal. Foi ele mesmo que disse que - "...a verdade é dispensável se eu puder melhorar uma citação ou uma história."
- "Eu teria pensado que, neste caso, com um entrevistado estrangeiro fora do alcance de outros jornais, ele podia se sentir confiante de que ninguém descobriria ou reclamaria se ele mentisse ou inventasse essas citações", disse Adrian Bingham, no livro "Tabloid Century: The Popular Press in Britain, 1896 to the present".
Tirando essa pequena aparição na imprensa, Heinrich viveu uma vida bastante modesta e circunspeta. Nunca se casou, nem deu nenhuma entrevista e trabalhou na pousada de sua família em Bremen até sua morte em 2008.
Historiadores que estudaram o caso de Heinrich de perto não concordam exatamente sobre o que fazer com sua história. Alguns argumentam que Heinrich provavelmente era intersexo e talvez tivesse genitália ambígua ao nascer e foi designado como mulher. Outros historiadores dizem que acreditam que a família de Heinrich, por razões que ninguém consegue entender, sabia que ele era um menino e escolheu criá-lo como uma menina.
Mas o que está claro é isto: Heinrich não fingiu ser mulher conscientemente para trapacear e entrar na competição feminina para ganhar medalhas. Outra coisa, a história de Heinrich não era conhecida pelos órgãos dirigentes dos esportes até 1957, no mínimo. Mas a primeira política de teste de sexo foi aprovada em 1936, 20 anos antes de qualquer pessoa no mundo mais amplo dos esportes sequer saber que Heinrich talvez não fosse uma menina.
E, no entanto, ainda hoje, a história de Dora que era Heinrich é citada repetidamente como inspiração ou justificativa para políticas esportivas que submetem atletas a "testes sexuais": exames e testes para confirmar se seus corpos estão de acordo com ideias específicas de feminilidade.
A história de Heinrich não oferece evidências da necessidade de testes de sexo, nem foi a causa de sua implementação -como é comumente alegado-. Mas pode ser vista como um microcosmo das falsas narrativas e equívocos que ainda circulam quando se trata de falar sobre gênero e esportes.
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