A ciência pode ser complicada. E eu não estou falando de toda a matemática envolvida ou o fato de que podemos fazer uma experiência uma dúzia de vezes e não obter o mesmo resultado duas vez. Estou só dizendo que pode ser arriscada. Pense no caso, por exemplo, Fritz Haber, o químico alemão que recebeu o Nobel de Química por desenvolver a tecnologia que tornou possível a produção de produtos químicos nitrogenados, como o fertilizante, que ajudou a alimentar milhões de pessoas. Só que ele não usou esta descoberta para isso. Ele usou-a para criar armas químicas. |
Da mesma maneira, a maioria das inovações que permitem hoje as viagens espaciais foram desenvolvidas para mísseis balísticos nazistas. Porém, quando pensamos sobre isto, nestes casos a ciência foi benigna, nem boa nem má.
Mas por vezes, o que as pessoas aprendem através das descobertas científicas pode levá-las a conclusões, e aplicações, que acabam por se mostrar bem erradas. Há poucos exemplos melhores que os trabalho do médico Português, Antônio Egas Moniz, que foi pioneiro de um procedimento cirúrgico, que para os seus companheiros, foi bastante efetivo no tratamento de muitos tipos de doença mental.
Passou a ser adotado por neurocientistas, cirurgiões, e psiquiatras de todo o mundo. Mas logo revelou-se, na melhor das hipóteses, irreversivelmente destrutivo, e na pior das hipóteses, desumano. E, no entanto Antônio foi galardoado com o Prêmio Nobel da Medicina por ele. É muito possivelmente o mais lamentável Prêmio Nobel já concedido, porque Antônio recebeu o Prêmio por desenvolver a lobotomia.
A história começa com John Fulton, um neurocientista de Yale, em 1935. John tinha passado os últimos cinco anos removendo seções de cérebros de chimpanzés e estudando como isso afetava o seu comportamento. Ele trabalhou principalmente com o córtex cerebral, a camada externa do cérebro.
Também é dividido em quatro lóbulos, onde cada um deles é responsável por um conjunto de funções cognitivas diferente. O lóbulo temporal, por exemplo, está localizado na parte inferior do cérebro e está associado com a memória, o som e a linguagem.
O lóbulo frontal, na parte da frente do cérebro, é onde reside nossa personalidade. Ele é responsáveis pelo nosso raciocínio, nossas emoções, habilidades motoras e de atenção, entre muitas outras coisas. Em 1935, cientistas como John estavam apenas começando a entender como cada um destes lóbulos se comportava. Mas a maioria de seus conhecimentos sobre o lóbulo frontal vinha apenas de alguns estudos, ou registros de lesões no cérebro, como o caso de um homem chamado Phineas Gage.
Phineas Gage.
Phineas trabalhava em ma ferrovia em 1848, quando uma explosão acidental alojou uma barra ferroviária na sua cabeça. A barra passou através de seu lóbulo e, por incrível que pareça, Phineas sobreviveu. Sua memória ainda estava intacta, mas sua personalidade era mudou diametralmente. Considerado um homem educado e amável antes do acidente, ele tornou-se grosseiro e agressivo, porque a parte de seu lóbulo frontal que foi danificada, o córtex orbito-frontal, é a parte responsável pelas emoções.
E John descobriu que os seus resultados eram semelhantes, quando retirou o córtex orbito-frontal dos chimpanzés. Ele realizou este procedimento em dois chimpanzés chamados Becky e Lucy. Rapidamente começaram a exibir um comportamento inadequado: defecavam em todos os lugares, faziam birras e geralmente pareciam estar totalmente fora de controle.
No entanto, quando John removeu o seu lóbulo frontal inteiro, eles se tornaram mais dóceis, relaxados e calmos. John apresentou suas descobertas na segunda Conferência Internacional Neurológica anual em Londres, em 1935. E na audiência estava Antônio Egas Moniz. Em alguns aspectos, Antônio era um verdadeiro homem do renascimento.
John Fulton.
Ele era um professor de medicina que serviu como Embaixador na Espanha, durante a Primeira Guerra Mundial. Era um legislador bem sucedido que escreveu uma série de livros populares sobre a sexualidade humana. E ele era um socialite extravagante que fazia festas suntuosas e projetava os vestidos noturnos da sua esposa.
Antônio era determinado, autoconfiante e inteligente e tinha grande trânsito entre a alta sociedade. Na verdade, no momento em que conheceu John em Londres, Antônio já tinha quase ganhado o Prêmio Nobel, pelo desenvolvimento de uma das mais importantes inovações em neurocirurgia na época. Em 1925, ele queria descobrir uma forma não invasiva de diagnosticar tumores no cérebro.
Então, ele desenvolveu um conceito chamado angiografia cerebral, em que uma solução de iodeto de sódio era injetada na artéria carótida, no pescoço do paciente. A solução então fluía para o cérebro. Como o iodo de sódio não pode ser penetrado pela maioria dos tipos de radiação eletromagnética, mostrava os vasos sanguíneos opacos quando vistos no raio-x.
E isso permitiu aos médicos encontrar problemas nos vasos sanguíneos do cérebro, causados por tumores e outras obstruções. A técnica de Antônio foi um enorme avanço no mapeamento do cérebro, e lançou as bases para os métodos que ainda usamos hoje para diagnosticar condições como aneurismas. Antônio foi, de fato, indicado duas vezes para o Prêmio Nobel, mas foi impedido, segundo alguns historiadores, por um dos organizadores do prêmio que tinha inveja dele.
Mas quando Antônio viu a apresentação de John sobre a sua pesquisa em chimpanzés, ficou inspirado. Porque, além do seu trabalho sobre de imagens do cérebro, Antônio passou anos trabalhando com pacientes severamente deprimidos, ansiosos e esquizofrênicos. E ele tinha desenvolvido uma teoria -e não com base em qualquer dado empírico- que a doença mental era causada pelo mau funcionamento das sinapses, ou conexões entre as células cerebrais, no córtex frontal.
Ele acreditava que eram essas más conexões disparando uma e outra vez que levaram a padrões de pensamento obsessivos que atormentavam muitos dos seus pacientes. No entanto, Antônio não tinha maneira de identificar que sinapses individuais estavam supostamente avariadas. Assim, ele propôs um procedimento, com base no trabalho de John, para destruir as fibras nervosas, também conhecidas como a substância branca, que liga lóbulo frontal ao tálamo, a estrutura nas profundezas do cérebro que recebe e transmite sinais sensoriais.
Ao romper essa ligação, Antônio acreditava poderia cortar o lóbulo frontal, e as suas sinapses descontroladas, do resto do cérebro, tornando-o inútil. Quatro meses após a conferência de Londres, Antônio decidiu realizar esta operação em um ser humano pela primeira vez. No entanto não foi feitar por ele, porque as suas mãos estavam deformadas com gota.
Por isso ele dirigiu um assistente de laboratório para fazer dois furos no crânio de uma ex-prostituta com 60 anos que sofria de psicose. O assistente então destruiu as fibras nervosas que partiam do lobo frontal com duas injeções de álcool puro. E a operação funcionou, no sentido de que a mulher parou de exibir os sintomas de psicose, mas ela ficou totalmente diferente, inerte e apática.
Antônio Egas Moniz.
Os seus processos de pensamento disruptivo pareciam ter parado, mas também todas as suas emoções. Essencialmente, ele removeu o que a tornava um ser humano. E ao longo do tempo, Antônio executou a operação em mais dezenove pacientes, eventualmente, refinando o processo com a utilização de um leucótomo, uma ferramenta parecida com um picador de gelo, que lhe permitia experimentar que fibras nervosas cortar.
No entanto, apenas uma separação completa das fibras do nervo parecia criar os efeitos que ele queria: os pacientes deixarem de exibir quaisquer sintomas de ansiedade, depressão ou esquizofrenia. Ele chamou esta técnica de leucotomia pré-frontal. "Leuco significa "massa branca", em latim, e "tomia" significa "faca".
Antônio publicou estes resultados em 1937 e o trabalho logo se tornou famoso nos Estados Unidos, onde o número de hospitais psiquiátricos e pacientes havia duplicado desde 1903. Hospícios e manicômios se proliferaram como fogo morro acima O proponente mais forte da leucotomia na América foi o professor de neurologia Walter Freeman, que também esteve presente na apresentação do chimpanzé de John e trocou cartas com Antônio quando ele fazia as suas experiências.
Walter e seu assistente, James Watts, um neurocirurgião experimentado, fizeram a sua primeira leucotomia em uma dona de casa do Kansas que sofria de um transtorno de humor. E depois da cirurgia, as suas mudanças de humor pararam. Testes posteriores mostraram que as suas memórias estavam intactas, bem como os seus movimentos e interações com as pessoas.
No entanto, os médicos também notaram que sua personalidade tinha essencialmente sumido. Embora já não estivesse prejudicada pelo seu transtorno de humor, ela foi prejudicada de muitas outras maneiras. Ela simplesmente existia. Se tornou um vegetal humano. Nos anos seguintes, James e Walter padronizaram a leucotomia e rebatizaram-na de lobotomia padrão.
Walter Freeman.
Eles publicaram um livro popular sobre isso em 1942, e após a Segunda Guerra Mundial terminar e milhares de soldados voltarem para a América com estresse pós-traumático, o número de lobotomias realizadas em um ano aumentou de 100 para 5.000. O procedimento tornou-se uma espécie de solução para tudo nos hospitais psiquiátricos americanos para um sem número de sintomas, incluindo desorientação, insônia, ansiedade, fobias e alucinações.
Diferentes versões do procedimento foram criadas. A versão padrão deu origem a uma lobotomia transorbital, em que uma versão mais fina do leucótomo era empurrada sob a pálpebra e para dentro do lóbulo frontal com um martelo. O cirurgião então mexia o instrumento à volta até cortar a conexão do lóbulo com o tálamo.
Apesar da crescente popularidade da cirurgia, existiram muitas críticas. Já em 1937, os médicos tinham notado que as lobotomias causavam movimentos estranhos, e inexplicáveis, em alguns pacientes. Em Chicago, a psicóloga Mary Francis Robinson avaliou 90 pacientes que receberam lobotomias e descobriu que a maioria deles não podia mais concentrar-se, pareciam desmotivados, e perderam o interesse nas suas próprias vidas.
A sua criatividade foi destruída. Músicos pararam de tocar; escritores pararam de escrever. Todos estes sintomas, no entanto, eram ofuscados pelo o que muitos psiquiatras viram como um comportamento externo mais estável. A voga da lobotomia atingiu um pico em 1949, quando Antônio, que era neste ponto considerado o pai do procedimento, foi premiado com o Prêmio Nobel de Medicina pelo seu trabalho.
Walter acabou viajando pelos Estados Unidos em seu "lobotomóvel", realizando até 25 lobotomias diariamente. Mas viajou sozinho, porque James o abandonou quando notou que seu colega se tornou desleixado rejeitando uniformes e luvas cirúrgicas, além de qualquer aparência de higiene em sua sala de cirurgia, supostamente mascando chiclete durante a cirurgia, não esterilizando as mãos e até mesmo operando em quartos de hotel.
Não é surpreendente que Walter tenha matado um paciente em 1967, que morreu de hemorragia cerebral após uma lobotomia, e sua licença foi posteriormente cassada. Mas até então ele causou muitos estragos. Uma de suas pacientes mais notáveis foi Rosemary Kennedy, irmã do ex-presidente dos EUA John F. Kennedy.
Rosemary teve problemas durante o parto, o que lhe causou privação de oxigênio. Durante sua infância e adolescência e ela tinha sérias dificuldades de aprendizagem e era descrita como irritável e rebelde. Seu pai não teve melhor ideia que buscar conselho com Walter. Aos 23 anos, seu pai autorizou sua lobotomia. O procedimento deixou Rosemary com deficiências físicas e mentais permanentes, mais um vegetal completamente incapaz de viver de forma independente até sua morte, aos 86 anos.
A popularidade da lobotomia parecia surgir não de um impulso para melhorar a qualidade de vida do paciente, mas do desespero decorrente de manicômios abarrotados. As lobotomias ofereciam um método barato e de longo prazo para controlar pacientes "indisciplinados", reduzindo o custo e o esforço de cuidar deles. No entanto, isso tinha um custo indescritível para os pacientes (ou vítimas?), variando de sofrimento à morte.
Walter e James praticando uma lobotomia.
O paciente mais jovem de Walter foi Howard Dully, de 12 anos. Felizmente, ele sobreviveu, mas em 2008 ele comentou em uma entrevista que - "...eu era como um zumbi; eu não tinha consciência do que Walter tinha feito." Ele também atribuiu suas frequentes infecções oculares aos seus dutos lacrimais sendo destruídos pela lobotomia transorbital.
A lobotomia permaneceu até 1952, quando uma empresa farmacêutica francesa mudou a psiquiatria para sempre através da introdução de clorpromazina, um medicamento psicótico que bloqueia os receptores de dopamina no cérebro. A dopamina é um neurotransmissor, um produto químico liberado pelas células nervosas, que lhes permite comunicar com outras células nervosas. E é vital na regulação do humor e das emoções.
Sistemas de dopamina muito ativos podem causar emoções exageradas e condições como a psicose, e a droga funcionava bloqueando os receptores da dopamina sobre as células cerebrais, acalmando a sua atividade. Com esta nova droga disponível, não havia necessidade de cirurgia, cara e perigosa, e rapidamente, o uso das lobotomias despencou.
O pior de toda esta história macabra é que a coisa toda ficou por isso mesmo, exceto na Noruega. Um relatório de 1996 do British Medical Journal detalhou que o Ministério de Saúde norueguês compensou financeiramente todas as pessoas que fizeram uma lobotomia no país. O governo decidiu por bem reconhecer os efeitos de longo prazo das lobotomias, que incluem deficiência intelectual, desinibição, epilepsia, apatia, estado vegetativo, incontinência e obesidade.
Hoje, a lobotomia é considerada perigosa e arcaica, uma ferramenta inadequada para o tratamento das complicações sutis das doenças mentais. E as carreiras de John, Walter e Antônio são consideradas por alguns como um dos capítulos mais sombrios da história da medicina. Porque, desde o seu tempo, as atitudes sobre saúde mental, e a forma de tratá-la, mudaram muito.
Passaram quase 90 anos desde que John Fulton descreveu as suas experiências com chimpanzés. Hoje, as condições como depressão, ansiedade, e transtornos de humor e de personalidade são todas tratadas com drogas, juntamente com diferentes tipos de psicoterapias, como cognitiva e terapias de comportamento. E, em vez de se concentrar em se livrar dos sintomas da doença mental, o tratamento psiquiátrico hoje visa ajudar os pacientes a serem funcionais e produtivos, convivendo com a doença.
No fim das contas, bem como as mentes que nos deram as armas químicas e mísseis balísticos, Antônio Egas Moniz produziu alguns trabalhos relevantes para a ciência, cujos efeitos ainda se fazem sentir e são usados hoje em dia. O problema é que o trabalho pelo qual ele é mais lembrado não foi o seu melhor.
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