Este é o tipo de coisa que causa perplexidade quando pensamos em sua origem. Quem é que foi o maluco que achou que era boa a ideia de cheirar as duas glândulas, localizadas ao lado do ânus de um castor? O castóreo tem cor parda com forte odor característico, que, misturado com a urina, estes animais usam para se impermeabilizar, engordurando sua pelagem. Não está claro quem determinou que as secreções do castor cheiram a baunilha, mas já na Roma antiga, Plínio, o Velho, em sua "História Natural", descreveu o óleo de castor, retirado dos "testículos", como eficaz para várias propriedades medicinais. |
É estranha esta obsessão que algumas pessoas têm com o castóreo, e a noção de que estamos todos involuntariamente comendo suco anal de castor. Vani Hari, a blogueira de saúde e bem-estar conhecida como "Food Babe, não começou essa coisa, mas ela certamente atiçou suas chamas.
Em um vídeo em seu canal no YouTube, ela se senta em um tronco, conversando com um castor de pelúcia dizendo que eles são os responsáveis por saborizar um monte de alimentos com seu pequeno rabo. Após o close-up do ânus de um castor -um buraco enrugado cercado de pele castanha- Vani explica que o castóreo é considerado um "sabor natural" pela FDA.
- "É muito mais barato usar castóreo, ou bunda de castor, para dar sabor a aveia com morango do que usar morangos de verdade", ela afirma, sem apontar nenhum dado para apoiar essa afirmação.
Ainda que Vani esteja certa de que o castóreo é classificado como um sabor natural, ela está errada sobre basicamente todo o resto. Não, o castóreo não é um substituto barato para os morangos; é um material luxuoso e artesanal. E não sai da bunda do castor; tecnicamente, nem é das glândulas anais do animal.
Claro, as glândulas secretoras estão bem ao lado das glândulas anais, mas enquanto as excreções anais cheiram a óleo de motor (nos machos) ou queijo rançoso (nas fêmeas), o fluido oleoso obtém sua fragrância de compostos vegetais concentrados de dietas selvagens dos castores. São basicamente essências de ervas processadas por castores.
O castóreo é um ingrediente segregado por excelência, algo que torna um sabor melhor e mais interessante, ao mesmo tempo em que escapa ao reconhecimento. Dá para entender como a adjacência anal dessas secreções glandulares torna o castóreo repulsivo para muitas pessoas, no entanto. Mas se é usado em aromatizantes, deve haver uma razão para isso: deve ser bom, mas também é cada vez mais raro.
O que o ânus do castor tem a ver com baunilha? Com baunilha, nada. Porém, se nos referirmos ao "sabor baunilha", as coisas mudam. Como explica a historiadora de sabores Nadia Berenstein, durante as décadas de 1960 e 1970, os fabricantes de alimentos americanos começaram a usar quantidades muito pequenas de castóreo para melhorar os sabores artificiais de baunilha, morango e framboesa.
Ou seja, décadas atrás, algumas pessoas devem ter sentido um cheiro de castóreo em um sorvete de baunilha, ou em alguns bombons de chocolate com sabor de framboesa. Mas a chance de que haja algum rabo de castor à espreita nos "sabores naturais" de hoje é praticamente impossível.
De fato, hoje a FDA norte-americana continua a aceitar a substância como aditivo alimentar. Porém, a verdade é que esses mesmos fabricantes norte-americanos rapidamente perceberam que o uso do castóreo era um enorme gargalo.
Não há castores para tanta baunilha. Bem, para falar a verdade, não há baunilha para tanta baunilha. Já na década de 1960, os produtores perceberam que a demanda por produtos com sabor de baunilha iria consumir a produção mundial da vagem de baunilha. Por isso, começaram a desenvolver formas de gerar artificialmente esse sabor -como acontece com morango e framboesa-.
A história é simples: tal como acontece com os medicamentos, a nível industrial é sempre melhor ter um composto padronizado e de fácil fabricação. O sabor das plantas depende de muitos fatores ambientais e depender deles geralmente é uma má ideia.
Quando muitos fabricantes de sabores de baunilha recorreram ao castóreo como forma de completar seus aromas, enfrentaram o mesmo problema. Não houve um circuito comercial em grande escala. Na verdade, nessa altura as explorações de castores que gozavam de boa saúde até à primeira metade do século estavam em declínio. O couro sintético levou esses criadores à ruína.
No livro "A Surpreendente Vida Secreta dos Castores e por que Eles são Importantes", o escritor Ben Goldfarb diz que a demanda por castóreo eliminou a maioria dos castores na Europa no final da Idade Média. Quando os europeus se estabeleceram na América do Norte, com seu abundante suprimento de castores, eles tiveram outro uso para o animal: bonés de pele de castor.
Os castores vivos, uma espécie-chave, ajudaram a construir a paisagem americana; castores mortos forneceram uma base para a acumulação de capital americano e ajudaram a financiar a colonização ocidental. Ben diz que os Astors fizeram sua fortuna original em castores, antes de entrar no mercado imobiliário americano.
Os seres humanos têm uma longa história de consumo de castóreo. Desde a antiguidade, ele foi aclamado como um remédio poderoso, um tratamento para tudo, desde epilepsia a prisão de ventre e picadas de aranha. As mulheres romanas inalavam a fumaça do castóreo fumegante na tentativa de induzir abortos. Francis Bacon, o polímata inglês do século XVI, recomendou cheirar um pouco de castóreo em pó como cura para a "névoa cerebral".
O comércio americano de castores trouxe o castóreo de volta aos holofotes por algum tempo, desta vez como perfume, porque seu cheiro é conhecido na perfumaria como "nota de base". Na perfumaria, o termo castóreo refere-se ao extrato resinóide resultante do castor seco e tinturado com álcool. Os sacos de castor secos geralmente eram envelhecidos por dois ou mais anos para amadurecer.
O castóreo começou a ser usado em aromatizantes no início do século 20, uma época em que os fabricantes de aromas tomavam emprestado livremente os kits de ferramentas dos perfumistas. Na década de 1960, estava sendo usado em misturas de baunilha e frutas; um livro de sabor dos anos 1970 elogiou as "notas incomuns" adicionadas aos sabores de morango e framboesa.
O castóreo podia ser encontrado em bebidas, assados, sorvetes, doces e especialmente em gomas de mascar. Os Algonquins tradicionalmente polvilhavam seu tabaco com castóreo seco e, no século 20, fabricantes de cigarros como Phillip Morris e RJ Reynolds também o faziam; deu a Camels e Winstons um aroma distinto e luxuoso.
O castóreo nunca foi baunilha falsa ou morango falso, não exatamente. Foi usado em pequenas quantidades, geralmente menos de dez partes por milhão, adicionando profundidade, complexidade e intriga às composições de sabor. Desta forma, o castóreo é um ingrediente secreto por excelência, algo que torna um sabor melhor e mais interessante, ao mesmo tempo em que escapa ao reconhecimento do que realmente é.
Na década de 1980, o uso de castóreo em sabores começou a ficar para trás. Em 1982, de acordo com a Associação de Fabricantes de Extratos de Sabor (AFES), 310 kg de castóreo foram usados em aromatizantes nos EUA. Em 1987, isso caiu para pouco menos de 115 kg.
A AFES não fornece os números atuais, mas confirma que seu uso "diminuiu significativamente" desde então. Os memorandos da indústria do tabaco sugeriam que os fabricantes de cigarros também abandonaram amplamente a substância. Mas o maior problema com o castóreo não era seu preço, nem suas origens anal-adjacentes. É que a bunda de castor não é kosher. Se as empresas alimentícias quisessem ganhar o selo de aprovação, quaisquer vestígios de castóreo em aromatizantes teriam que ser vetados.
O que os fabricantes fizeram? Pois substituiram a baunilha e os castores. A chave foi encontrar uma maneira de produzir vanilina (o principal composto aromatizante). E eles conseguiram. Hoje, menos de 0,3% da vanilina usada para dar sabor aos alimentos vem naturalmente dos grãos de baunilha. E, claro, praticamente nenhum sabor de baunilha vem da bunda do castor.
Existe uma bebida tradicional com sabor de castóreo: a Bäverhojt, uma aguardente tipicamente consumida por caçadores suecos antes de sair para um dia de caça. O destilador da bebida tomou a decisão nada tradicional de infundi-lo em bourbon por causa de sua nitidez de framboesa e aroma cremoso de baunilha e bétula.
Os castores são ferozmente territoriais, e, além de usar o castóreo para impermeabilizar sua pelagem, eles também marcam seu território. Eles constroem montes de lama e esguicham castóreo de suas gloriosas bundas multiuso. Para um castor, o castóreo é um ensopado químico complexo, que anuncia o clã de um castor e diz aos não parentes para se manterem afastados.
Pelo que sabemos, a grande maioria da vanilina hoje é sintetizada a partir do guaiacol, um composto natural que pode ser obtido a partir de guaiacos, gafanhotos-do-deserto e do processamento de carvão. Ou seja, em lugares muito estranhos, sim, mas felizmente não na bunda de um castor.
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